HORTO E GRAFIA

        

         Dona Grafia é uma boa senhorita de setenta e cinco anos. Senhorita, vírgula, porque é uma cedilha certinha para certo coração. Quem a admira por isso é o seu noivo, Horto Serto. Horto, não; ponha dois pontos:  doutor Horto Serto, bacharel em Direito, desde 1935.

O advogado a viu, exclamou de pura surpresa, numa festa de batizado. Franziu os sobrolhos em aspas, e ela o olhou de travessão – no sentido de prato de louça, transbordante de casadinhos;

- Gosta deles, doutor Horto Serto?

Dona Grafia, chamada Fia, ficou um tanto reticente, quanto à ideia de namorarem. A idade era tão avançada... E ele apertando o diálogo:

- Case-se comigo, minha Fia!

- Não entrarmos em concordância, apesar das colocações...

- Eu sou de pouco verbo, mas sou um sujeito simples.

- Para mim, é indeterminado.

- Sei que serei sempre oculto. Não consigo a composição!

Encontraram-se aqui e acolá, ontem não, talvez amanhã, dependendo das circunstâncias. Ela, muito adverbial:

- Somos quase dois parênteses.

O amor, em qualquer idade, será sempre interrogação:

- Para quê? Por quê? Pra quando?

Houve frases imperativas:

- Seja correto! Detesto pretextos.

E as houve declarativas:

- Juro atender suas normas.

Afinal, optaram juntos, rendidos num ponto final.

- Que Deus nos faça felizes e nos ponha sem erros no Céu!

Amém.

Graça Rios 

PRECISAMOS CONVERSAR SOBRE O DUDU

 


Quando fiquei sabendo que o general Eduardo iria dividir seu precioso tempo entre as agruras do Exército e os não menores percalços do Ministério da Saúde, em insofismável demonstração de altruísmo e amor à pátria, pensei com meus borbotões: - Coitada da covid, lascou de vez! Agora, com nosso especialista em Logística, esse vírus peçonhento vai saber o que é bom para a febre e para a tosse. Vai ser só o Edu determinar a Hora “D” do Dia “H” para o bolota (do vírus) implodir de vez (o vírus, não o Riocentro).

Outra coisa que a atitude do Eduardo veio resgatar foi minha combalida crença no ser humano. Nos últimos tempos, com muitos indivíduos, especialmente da classe militar, aderindo ao desgoverno que está aí, a troco de “emprego” na máquina pública, ficou circulando nas redes sociais o antigo ditado de que toda pessoa se vende, só é preciso saber por qual preço. Ao ver a destemida coragem de Edu de pegar a danada da covid pelos chifres, pensei: “- Esse aí não! Esse aí está agindo motivado pelo amor para com seus compatriotas”. Com lágrimas nos olhos, desejei todo sucesso para o ministro em sua empreitada (lágrimas que não eram de crocodilo e nem de jacaré de papo amarelo, juro).

Também não deixei de reconhecer os méritos do presidemente. Depois de duas tentativas de nomear médicos para o ministério, viu que médico não está com nada mesmo, já que são poucos os que aderiram à cloroquina e ao “tratamento precoce”. Na guerra contra a pandemia, o certo mesmo era empregar um militar, com especialidade em estratégia, em logística.

No início de sua empreitada, tomado de ingenuidade, Dudu tentou negociar a compra de vacinas. No entanto, Ja-ir advertiu-lhe:

- Alto lá, Pazu! A logística da vacina tem de ser de faz de conta. O que queremos mesmo é atingir a imunidade de rebanho. Para isso, o que você precisa implementar é a desova dos milhares de comprimidos de cloroquina produzidos pelo laboratório do Exército. Além do mais, meu amigo Trumpinho está enviando dos Estados Unidos uma remessa de dois milhões desses comprimidos, com prazo de validade a expirar. Então, sua logística deve estar centrada em fazer chegar esses comprimidos até os grotões do país, talquei?

- Está certo, Boró. Um manda e o outro obedece – falou Edu, com os olhos brilhando com a mais pura alegria.

E, assim, foi Dudu propalando o tal do tratamento precoce, distribuindo o tal de “kit covid” [difosfato de cloroquina, hidroxicloroquina e fosfato de oseltamivir (o tal tamiflu)] entre as populações carentes e desinformadas.

O Barão de Itararé já dizia: “Tudo seria fácil se não fossem as dificuldades”. E foi isso que aconteceu:  a certa altura do campeonato, não sei precisar por quais razões ocultas, Eduardo encontrou uma pedra no caminho de sua nova empreitada como ministro. Depois de ter estado no estado do Amazonas e respirado seus ares, foi surpreendido com a falta de ar nos leitos dos hospitais. Junto com essa pedra da falta de ar, outras pedras começaram a surgir no caminho de Edu, de modo que todo mundo começou a atirar pedras no pobre coitado, fazendo lembrar aquela música do Chico, a Geni. Tantas pedras foram atiradas, que Dudu não resistiu e teve que entregar o boné. Com isso, foi de todo impossível ao general-ministro, ele que era tão competente em sua logística, desferir um tiro de fuzil no danado do vírus, matando-o com uma bala de prata.

Depois de ser exonerado, Eduardo participou de um ato político com Ja-ir no Rio de Janeiro. Como o Estatuto das Forças Armadas proíbe participação de militares da ativa em atos políticos, o ex-ministro acabou sofrendo processo disciplinar, mas foi absolvido. Quer dizer: o Exército ‘despuniu’ o punível, fazendo de conta, assim, que não era o que tinha sido, compactuando-se com o ilegal e imoral. Fez valer a máxima de que toda regra tem exceção e que, no Brasil de hoje, mais vale a exceção do que a regra.

O inusitado disso foi que o Exército, ao arquivar o processo, impôs sigilo de 100 anos, sob a alegação de que a apuração continha dados pessoais. Assim agiu nosso histórico Exército, varrendo para debaixo do tapete uma improbidade, seguindo o brilhante exemplo de Ja-ir, cuja carteira de vacinação ficará em sigilo por um século também. Para se entender a disparidade entre os tempos de sigilo no Brasil e mundo afora: A Agência Espacial Brasileira (AEB) oculta pesquisas sobre foguetes por cinco anos; papéis americanos sobre a ditadura brasileira foram mantidos ocultos por 41 anos e 11 meses. A depender dos militares aqui no Brasil, o trabalho de um historiador é tarefa estéril, a não ser que ele tenha acesso aos tapetes das repartições públicas e militares...

Ao fim de tudo, o general Eduardo, ainda conseguiu uma “boquinha” na máquina amiga do desgoverno: o de secretário de Estudos Estratégicos da Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (ainda bilocando entre duas repartições, tal qual São Martinho de Porres). Como se pode observar, Du continua firme e forte na sua especialidade de estrategista. Ele vai receber R$ 16.944,90 ao mês, valor que irá se somar ao seu modesto salário de general do Exército. Essa é uma logística pra ninguém botar defeito. Arre!

P.S. Considero compreensível alguém procurar se ajeitar na vida, desde que não seja à custa de outras vidas. De forma trágica, o Brasil bate recordes de mortes por conta da covid. E isso acontece mais por conta da irresponsabilidade, da incompetência e do descaso com que a doença é tratada, especialmente por quem deveria, através de exemplos e atitudes, estar à frente no seu combate. Não é isso, caro Leiturino?

Etelvaldo Vieira de Melo


CALHAUS BLOGUÉTICOS: VOLUME 1 (EM NOME DA MENTIRA)

 


Segundo o Nano Dicionário Eleutério (primo pobre do Mini Dicionário Aurélio), calhaus são aqueles textos curtos enxertados entre as matérias dos jornais impressos, com o objetivo de não deixar espaços vazios. Vulgarmente, também significa “encher linguiça”, conversa fiada, o que os pernambucanos chamam de potoca.



Sendo o blog um veículo jornalístico, é natural que ele tenha seus calhaus, atendendo às necessidades do blogueiro, especialmente quando a inspiração anda curta e ele se vê exprimido, comprimido e impelido a publicar alguma coisa. Como você mesmo poderá observar, muitos calhaus se constituem verdadeiras pérolas, tipo perfume francês, preciosidades em pequenas embalagens.

Parodiando Fernando Pessoa

O presidente é um fingidor demente

E ao fingir só mente

Mente, mente, tanto mente

Que chega a sentir que é mentira

A mentira que deveras sente.

Expressão Absurda, Desconexa

Alguém dizer: “Taí o Bolsonaro que não me deixa mentir”. 


FAKE NEWS: ORIGENS

Os fins justificam os meios, arrotava a Lava Jato. E todo mundo aplaudia. Mas ninguém se dá conta de que quem aprendeu bem a lição foi Bolsonaro e seus seguidores: desandaram a espalhar mentiras, com o objetivo de alcançar seus propósitos. Tudo dentro daquele princípio defendido por Sérgio Moro e Companhia de que, para se chegar a determinado fim, tudo é permitido. Palmas para a Lava Jato, que ela merece.

Analogia Bíblica

[para que até mesmo os ‘cristãos do bem’ entendam]

É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que Bolsonaro deixar de falar mentiras.

Analogia Futebolística

[para que os democratas do país ‘coloquem suas barbas de molho’]

É mais fácil o Cruzeiro retornar para a Primeira Divisão do Campeonato Brasileiro do que Bolsonaro e Companhia deixarem de tentar um golpe em caso de derrota nas próximas eleições.

CITAÇÃO BÍBLICA

[para que o ‘cristão do bem’ se afaste de vez de Bolsonaro, convencendo-se de que aquela história de ‘Deus acima de tudo’ não passa de ‘conversa para 'boi dormir’, engabelação de trouxas]

Depois de dizer que Deus odeia a língua mentirosa (12:22; 6:16-19), o Livro dos Provérbios faz uma declaração especialmente endereçada a Bolsonaro, e que deveria ser colocada na parede de seu gabinete em Brasília: “Os lábios arrogantes não ficam bem ao insensato; muito menos os lábios mentirosos ao governante!” (Provérbios 17:7).

Algo Assustador

No início de seu mandato, Bolsonaro só sabia rir. Quando eu abria um jornal, lá estava Bolsonaro rindo. E pensava: - Esse cara só sabe rir? Depois, com o tempo, ele fechou a cara e começou a falar mentiras, uma atrás da outra. Depois, ainda não sei. O que sei: li uma citação de Stephen King, que me deixou deveras assustado (seria uma espécie de premonição?): “Primeiro vem as risadas, depois as mentiras. Por último o tiroteio”.

Concluindo

Você pode reclamar: - Mas Bolsonaro não fala nenhuma verdade? Não sei dizer: Como bem expressa Jacinto Benavente y Martinez, “Na boca do mentiroso, até a verdade é suspeita”.

E o que me levou a todo esse trabalho de ‘copia e cola’ foi ter esbarrado com esta citação de José Saramago, dizendo: "Quando um político mente destrói a base da democracia". Democrata e empenhado na defesa da verdade, bem sei como isso é difícil: “Uma mentira pode correr seis vezes pelo mundo antes que a verdade tenha tempo de vestir as calças” (Mark Twain).

É por tudo isso que estou com Olavo de Carvalho (amigo e guru de Jair Bolsonaro) e não abro, quando diz: “Moderação na defesa da verdade é serviço prestado à mentira”.

Etelvaldo Vieira de Melo

FLASH


Não que o meu corpo

adormecido em conchas

se abrisse – planta e seiva –

em águas vivas

 

Não que o rumor

duendes grutas lutas

ferisse – chaga e chuva –

a claridade

 

Não que em cadeia

a ave intemporal

rasgasse com o bico adunco

a teia da realidade.

Graça Rios


UMA BELA LIÇÃO DE VIDA

 
Imagem: Maratona de Porto Alegre

Lucenildo Faustino Reguete* é um vizinho que, com o passar do tempo, tornou-se um grande amigo. Entre as afinidades que nos aproximavam, estava a de torcermos para o mesmo time de futebol. Os feitos do ‘Cabuloso’, como o time era identificado (agora, está mais para Horroroso), rendiam longas e agradáveis conversas.

Tínhamos nossas desavenças, especialmente no campo da política. Por exemplo, quando do golpe que destituiu a presidente Dilma, Lucenildo jurou que iríamos entrar numa nova onda de moralização no trato da coisa pública, com os corruptos sendo exemplarmente punidos.

- Bah! – falei, em tom de deboche. – Duvideodó que, por exemplo, o Temeroso vai pagar, indo pro xilindró.

Estava me referindo a Michel Temer, o homem da mala.

Lucenildo propôs, então, uma aposta: uma caixa de cerveja, caso Temer fosse ou não preso no prazo de um mês. Anos se passaram e ainda não vi a cor do prêmio.

Imagem: Maratona de Buenos Aires

Tem meu amigo outro pequeno defeito: é metido a atleta. Enquanto estou me vendo cada vez mais entrevado, tomado de dores pra tudo quanto é lado, ele continua esnobando seu preparo físico em corridas e caminhadas. Quase todos os dias, às cinco da manhã, estando eu fazendo meia-noite, lá vai ele correr pelas ruas e avenidas do bairro. Quando a pandemia não tinha virado tudo de cabeça para baixo, Lucenildo era um frequentador assíduo de maratonas, aqui no Brasil e no exterior.

Entre suas qualidades, destaco a de ser uma pessoa muito prestativa, não medindo sacrifícios para ajudar os outros. Aqui em casa mesmo são muitos os favores que presta: uma arranjada na trepadeira de jade, a colocação de uma tela de sombreamento no pergolado, uma poda em árvores e folhagens, subir no telhado de casa até as placas de aquecimento solar, para fazer uma ‘sangria’, tirando o ar do encanamento de água quente. Talvez ele faça tudo isso tomado de compaixão, ao ver que não aguento mais nem ‘segurar uma gata pelo rabo’.

Quem não se dá bem com Lucenildo é o Thor, o cão de casa metido a feroz. É só o amigo tocar a campainha que o Thor desanda a latir desesperado. E aí começa uma discussão entre os dois, Thor latindo e Lucenildo provocando. A briga termina depois de muito tempo, quando se cansam, um vendo que o outro não dá o braço a torcer.

Ontem, fui surpreendido com Lucenildo tocando a campainha, pedindo para que levasse um saco de lixo até o portão. E lá estava ele, com uma vassoura, varrendo o passeio de casa e retirando o mato em torno das árvores de resedá e  callistemon (popularmente conhecida como escova-de-garrafa).

Tem um ditado que diz: “se cada um se preocupar em varrer a porta de sua casa, a rua vai ficar limpa”. Este é um belo ditado, serve muito para os tempos que vivemos. Lucenildo, inova, vai mais além: não só cuida de varrer a porta de sua casa, como varre até mesmo a do vizinho.

Vendo aquele gesto de Lucenildo, fiquei pensando: - Brasil, Brasil, como seria bom se as pessoas daqui fossem assim, amigas, desprendidas, generosas. Quando a gente vai às redes sociais e lê as notícias, só vê maledicência, só coisa ruim, egoísmo, inveja, rancor, brigas e ofensas, presidente mandando as pessoas se armarem, em vez de se amarem, pessoas doidas (só pode ser isso) achando que é legal acabar com a liberdade no país.

Olhando para o fim da rua aqui de casa (ela é uma rua pequena), pensei também: - A vida é curta, tem que ser vivida com sabedoria: prazer, bondade, alegria. É isso que vale a pena. Vivendo assim, não só estamos dando um sentido bom para nossas vidas, como estaremos deixando as sementes de um futuro melhor para a própria humanidade. Esta lição tenho aprendido com Lucenildo, um vizinho amigo.

(*) Pseudônimo de Lúcio Tolentino Silveira.

Etelvaldo Vieira de Melo


AO VAZIO NAS REDES

Imagem: Univerdade Online de Viçosa


o real é o real – a rainha Realidade reina pelos mundos

não há que temer as certezas, amores: o certo é o certo;

o torto é o torto; há curvas, há retas e há os desencontros,

e não há que se ter prazer nesses ventos de ares imundos.

 

só porque se dizem soltos das réguas, uns tais inumanos

vendem-se como livres, estufam o peito, alargam os ombros

espalham-nos buracos ôcos, sonham tudo só de “espertos”

são vôos sem planos, rotas sem bússolas, cenas sem fundo.

querem desconstruir o que nem sequer esboçariam, ô dó!

esvaziarem o que não encheram?! Fazer-nos de meros robôs?!

almas não se esburacam como se dá em contrapisos chôcos...

nas cheias há respiros, abasteceres, devagares e bons retornos

o vazio pode ser espaço, mas primeiro da solidão, e só depois

da felicidade ou da beleza; da liberdade, jamais do abandono.

Lopes al’Cançado rocha, o Cristiano (pingodeouvido.com)

RATO? RAVEN?

 

Era pleno dezembro.

Alguém interfona.

- Se és, como te chamas, nesta funda noite umbrosa?

(Lanosa, conjeturo.)

- Espírito noturno, t’esconjuro?

-  É só isto e nada mais.

- Então, sobe, sô.

- É só isto e nada mais.

Acenam apenas penas

por trás do verde

olho.

E ela, ave amarela:

- Sou teu louro, Lenora.

- É só isto e nada mais?

Graça Rios