POR QUE ANDO TRAVESTIDA DE ANTA

 

Observo de esguelha quem me solicita algo para publicação. Mnemosyne deixa clara a lembrança de estranhos equívocos acerca de tais conjecturas literárias. O receptor toma do texto cheio de cuidado e boa intenção. Se o conteúdo segue retilíneo, escorreito, leve, nenhum perhaps.

Dia seguinte, lá está a matéria, prima da perfeição. Colada no blog, no jornal, no muro, nada de talvez. Beleza pronta para uso.

A dúvida cartesiana surge quando leitor/mensagem digladiam com pensamentos. O Marquês de Sade saberia explicar isso melhor que eu. Ou Freud, com a palavra unheimlich.                                                                                                                                             

Imagine! O olhar se expande na cara do sujeito pedinte. Desacredita do que lê: ‘Será que neste ponto está posto esse tabu linguístico, essa indecência, de fato? A mulher tão pudica, tão nobre na acepção cultural, de repente endoida e sapeca uma vagina ou um pinto na pobre gente sua irmã? Ah, never! Tá errado. Digitou má letra, manoteou feio. Melhor eu entrar de sola nessa excrecência nominal, ajeitando o Santo Espírito Metódico aqui. Ali. Acolá. É, ficou lelé, a dona Graça. Perdeu o siso, coitada. Consertemos o troço, excluamos o trecho pecaminoso. Eu que achava ela...’

Faz dois anos, redigi uma crônica digestível, dirigida ao pessoal do Braille. Contei a história de um blandicioso cego, subitamente tomado de insensatez orbital.

Pára de enxergar a cor verde-amarela, o céu azul, o branco das nuvens. ‘Montanha, mar, bananeira, saiam fora de meu sobrancelho plano. Aves, vão agourar noutra íris paradisíaca. Comigo, não, solo vão. Vou logo me operar com o doutor Pitangui.’

Dei tudo a entender que se tratava de pura metáfora. Retrato, ele era só do brasileiro que não está nem aí pro amado rincão.                                                                                        

Por cargas descargas pouco perfumadas, parte a escritura em viagem. Pousa na mão de certa portuguesa, professora da Flor do Lácio. Acorda-me, medrosa, à meia-noite. Trimmmmm trimmmmm trimmmm.


Pego, cambando, o telefone. ‘Li sua redação, Maria. Penei horrores com seu teor dramático.’ ‘Hein? Estou sonhando?’ ‘Quero ajudar o pobre sem luz na retina de vosso discurso.’  ‘O cego nacional?’ ‘Pois, pois. Mando quinhentos dólares pra cirurgia dele. Tá marcada?’ ‘Tá, tá, tá, sim.’ ‘O que faço?’ ‘Fácil. Põe tudo na minha conta. São estes os dados bancários. Anotou?’  ‘A senhora entrega ao infeliz, meu dinheiro?’ ‘Podes confiar. Envia por TED, é rápido e rasteiro. Que alegria o maluco pelo bisturi vai sentir!’                                                                                                                                                          
Ora, ora. Pena de cabrito! A lusa concluiu que algo na fala minha estava fora da ordem mundial. Dimdim, tiau tiau.

                                                                                      Graça Rios

2 comentários:

Lopes al'Cançado Rocha, o Cristiano disse...

Essas crónicas são arenosas, movediças...cheias de simbologias. Caem no "coração imaginativo" de quem quer que imagine o quê...?! Mais gente, mais gerações (do Brasil e do Mundo) precisam conhecer melhor essa Graça, essa borboleta 🦋 azul que invade palácios como se entrasse-saísse das cirandas escolares mais humildes desse gigante Brasil! Nesse texto, como já disse, sinto-me um Silviano Santiago lendo Graciliano Ramos.São tantas as entrelinhas...tantas deixas, muito envolvimento. E olha que só numa circunstância.Tudo exposto nem nada precisar explicar. É a palavra em arte. É literatura.

Eduardo Rios disse...

Orgulho.. minha tia.. minha madrinha. Faça o que o coração lhe faz bem, as atitudes é que marcam. Palavras ecoam... até mesmo o que Jesus, pelo que temos na história e na tradição, escreveu foi apenas uma frase na areia, com pouco a minutos se foi.... mas os seus atos estão aí, escritos pra todo mundo ver...minha dindinha, seus escritos foram avaliados, mas suas atitudes dando aulas e amando esses irmãos desprovidos das cores passam despercebidos pelo outro lado do trimmmmm trimmmmmm... mas não há uma so folha que não caia sem que Deus permita 🙏😊🌿

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