Há muito tempo, um psicólogo disse - pela TV - que dançar é um gesto de
humildade. E disse mais sua eminência parda: - Quem não dança é porque tem um
problema sexual mal resolvido.
Como não sei dançar, senti-me duplamente ofendido: ser taxado de
arrogante, vaidoso, e portador de um desvio sexual. Pensei comigo: - Tá danado!
Desde então, procuro demonstrar que sou uma pessoa simples, humilde,
acessível. Quanto ao desvio sexual, estou procurando saber qual, sem, contudo,
chegar a uma conclusão definitiva.
Além de humilde, preciso confessar que sou também muito ignorante, no
sentido de lerdeza, lentidão de espírito, e não de estupidez, de pessoa tosca e
agressiva, tipo o presidente da república que temos aí.
Reconhecendo minha ignorância, de que só sei que nada sei, procuro me
espelhar nas pessoas sábias e eruditas. Daí, estou sempre aprendendo alguma
coisa, reformulando meus conceitos e juízos de valor.
Por exemplo: tinha comigo, por causa de uma formação religiosa, que o
importante na vida é ser, e não ter, que o ser humano vale pelo que ele é, e
não pelas suas posses.
Tal conceito me acompanhou durante muito tempo, até que foi derrubado,
destroçado por outra máxima, que proclamava: - Essa história de que o
importante é ser não passa de justificativa de fraco, de gente incompetente que
não consegue se estabelecer, puro despeito e inveja de acomodados e covardes
diante daqueles que conseguem sucesso.
Humildemente, refiz meus conceitos e passei a adotar este princípio: -
O importante é ter, consumir. Esse é o suprassumo da felicidade.
Foi a partir daí que me tornei um consumidor voraz, sem precisar ser
seduzido por aquele apresentador de um canal de TV, especializado em vendas,
cujo bordão é:- Compra! Compra! Compra!
Assim como o hipocondríaco que não aguenta ficar um dia sem ir a uma
farmácia saber das novidades da Pfizer, assim eu não conseguia ficar uma semana
sem visitar um shopping para saciar minha sede de consumo e, por via de
consequência, de ser feliz.
Mas é preciso deixar claro uma coisa: não era qualquer shopping que
saciava minha sede. Devido a agravos pecuniários, os shoppings que recorria
eram os populares, bem populares, aqueles essencialmente ‘Made in China’, do
tipo ‘Um e Noventa e Nove’.
Foi nessa ocasião que fiz uma descoberta interessante: a China, país
comunista, teve o grande mérito de socializar os bens de consumo, aproximando o
capitalismo das classes menos favorecidas. Desse modo, para desespero do gado
bolsonarista, a expressão máxima do capitalismo é... um país comunista! E digo
mais: se não fosse a China, os países de periferia teriam entrado em convulsão
social há muito tempo. Os governos de países ‘em vias de desenvolvimento’
(ainda existe isso?) deveriam agradecer, pelo menos isentando de impostos as
lojas de 1 e 99, elas que amortizam desejos reprimidos, acomodando os pobres, sedando
suas revoltas diante dos desequilíbrios sociais. Em resumo, podemos dizer que,
se antigamente a religião era o ópio do povo, hoje conta com a parceria das
lojas populares.
De minha parte, posso dizer que tudo ia bem, até que dois eventos quase
colocaram tudo a perder: a Pandemia e a guerra de fofocas promovida por
integrantes do governo que está aí.
A Pandemia fez com que eu ficasse recluso, estando afastado dos
shoppings populares há quase dois anos. Nesse período, meu consumo ficou
praticamente restrito aos bens de alimentação, onde até os hortifrutis passaram
a ser adquiridos pela Internet. Foi quando Percilina e eu criamos uma logística
de fazer inveja a qualquer Pazuello da vida. Os produtos, comprados após
exaustiva pesquisa, depois de passarem por um rigoroso controle de
higienização, eram acondicionados em embalagens individuais para consumo. E,
assim, com pesquisas, compras e preparo de comida, o tempo foi passando. Até
que o impulso para consumo de bens supérfluos bateu à porta. Foi quando também
bateu a necessidade de estreitamento de relações com a provedora de quase tudo
que é produzido nesse planeta, a China (como bem diz o ditado: “Deus fez o Céu
e a Terra, a China fez o resto”).
Mas aí o desgoverno que está aí resolveu encrespar com nosso maior
parceiro comercial, em ostensivo puxa-saquismo de Donald Trump, o destemperado
presidente americano. Nessa altura do campeonato, o dólar estava lá nas
alturas. Qualquer compra internacional seria uma temeridade. Mas eu tentei.
O caminho escolhido começou com uma pesquisa com os gurus da Internet.
Digitei no Dr. Google: “Passo
a passo de uma compra através da Ali Express”. Os resultados foram desanimadores: além do preço em dólares (que já
tinha ultrapassado a barreira dos R$5), ainda estava sujeito à taxação dos
Correios e do ICMS. Fazendo e refazendo as contas através de uma calculadora
‘Made in China’, cheguei à triste conclusão de que a compra de um soundbar, ou
barra de som (meu sonho de consumo de então) era proibido, já que o valor original
iria dobrar.
Profundamente infeliz, retomei a rotina de consumo de bens essenciais.
Até que um dia, armado de cara e coragem, entrei na Internet, fiz o cadastro no
site de compras e efetuei um pedido (um fone de ouvido para assistir minhas
séries favoritas). Com o coração saindo pela boca, mais de emoção do que medo,
proclamei à moda de D. Pedro I: “A sorte está lançada!”. E saí correndo pro
banheiro.
No livro “O Pequeno Príncipe” existe um diálogo muito interessante
entre a Raposa e o Príncipe. Ei-lo:
- A gente só conhece bem as coisas que cativou - disse
a raposa. - Os homens não têm mais tempo de conhecer coisa alguma. Compram tudo
já pronto nas lojas. Mas como não existem lojas de amigos, os homens não têm
mais amigos. Se tu queres um amigo, cativa-me!
- O que é preciso fazer? -perguntou o pequeno
príncipe.
- É preciso ser paciente -respondeu a raposa. - Tu te
sentarás primeiro um pouco longe de mim, assim, na relva. E te olharei com o
canto do olho e tu não dirás nada. A linguagem é uma fonte de mal-entendidos.
Mas, cada dia, te sentarás um pouco mais perto...
No dia seguinte o príncipe voltou.
(Aqui está a passagem de destaque)
- Teria sido melhor se voltasses à mesma hora - disse
a raposa. - Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde,
desde as três eu começarei a ser feliz! Quanto mais a hora for chegando, mais
eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta e agitada:
descobrirei o preço da felicidade! Mas se tu vens a qualquer momento, nunca
saberei a hora de preparar meu coração... É preciso que
haja um ritual...
Pois, amigo Leiturino, é isso que passei a experimentar com minhas
compras da China. Elas só têm me proporcionado alegrias, felicidades. É tudo
feito com muito ritual: a escolha de um produto entre centenas de opções, o
preenchimento dos dados, o fechamento da compra, a notificação de aprovação, o
código de rastreio, o produto atravessando mares e continentes e chegando ao
Brasil, a liberação pela alfândega, o rastreio dos Correios até que,
finalmente, o objeto de desejo chega à residência. Quando abrir a embalagem,
você irá traduzir as instruções, repassadas em inglês e mandarim. Quer dizer,
além de todas essas felicidades, você ganha uma a mais: a de começar a aprender
um novo idioma (a propósito, querendo aprender um pouco de mandarim, coloquei
as séries chinesas no topo de minhas preferências). Todo o processo de minha
primeira compra durou exatamente 12 dias! E foram dias da mais intensa emoção,
da mais pura felicidade. Depois de receber o produto, você poderá fazer uma
avaliação, que terá tradução simultânea para mais de 160 países. Quer dizer: ao
final de tudo, você poderá se comunicar com pessoas do mundo todo! Quer maior
alegria?
Está certo que ando atropelando as coisas, passando, como se diz, o
carro à frente dos bois. Afoitamente, ando fretando aviões para trazerem mais
produtos para mim: já fiz uma segunda, uma terceira, uma quarta, uma quinta e
uma sexta encomenda. É só eu abrir o site da Ali Express e uma voz fica
buzinando no meu ouvido: “- Compra! Compra! Compra!”. Você acha que estou me
tornando um consumidor compulsivo? Será que terei que recorrei à minha sobrinha
Dri, psicóloga de mão cheia? Além de moderar meu ímpeto consumista, poderemos
entender melhor essa história de ser e de ter, percebendo que, afinal de
contas, ser é mais importante que ter, quem sabe resgatar o valor da amizade. Também
poderei argumentar com ela, mostrando que não sou um cara arrogante, mas muito
humilde. Quanto aos problemas de natureza sexual, poderemos deixar para outra
ocasião. Resolver o desequilíbrio de minha balança comercial com a China
demonstra ser prioridade.
P.S. Eleutério tinha medo de que este depoimento, pudesse chegar ao
conhecimento de Paulo Guedes, Ministro da Economia, que iria esbravejar:
- É um absurdo o que acontece no Brasil, se até Eleutério está fazendo
suas compras lá da China! O país está querendo virar uma bagunça, é preciso dar
um basta nessa farra. Vamos deixar o dólar lá nas alturas para que a patuleia
da gentalha não se assanhe importando produtos de um e noventa e nove.
Antes de Paulo Guedes arrotar mais essa bravata, um consórcio
internacional de jornalistas divulgou um relatório mostrando que autoridades e
artistas brasileiros, como o próprio Paulo Guedes, e o presidente do Banco
Central, Roberto Campos Neto, possuem empresas e dinheiro investido em paraísos
fiscais, as famosas offshores. Guedes é dono de uma empresa offshore com
US$9,55 milhões nas Ilhas Virgens Britânicas.
Tenho um amigo que sempre diz: “Por trás de toda ação há uma oculta
razão”. Paulo Guedes, quando interrogado sobre a alta do dólar no governo
Bolsonaro, afirmava mais ou menos o seguinte: “Não tem problema o dólar
aumentar. É até bom que ele fique bem caro”. Agora estou sabendo pra onde ele
estava olhando quando disse isso. Segundo relatos (Carta Campinas), Guedes
lucrou a bagatela de R$28 milhões com sua offshore nessa sua brincadeira de
manter o dólar lá nas alturas. Como tenho dificuldade em lidar com certos
valores, fiz as contas e cheguei à conclusão que o lucro de Paulo Guedes só com
sua empresa em paraíso fiscal corresponde a 25.454 meses (1.958 anos) de
trabalho de um assalariado. E o sacana ainda tem coragem de ficar implicando
com as empregadas domésticas indo pra Miami e o Eleutério fazendo suas
comprinhas de um o noventa e nove da China! Com Paulo Guedes, estou vendo, não
dá para esticar a felicidade. Nem mesmo dá pra ser feliz.
Etelvaldo Vieira de Melo