ERA UMA VEZ NO ARRAIAL DA GUARITA


Rolando Pedregulho não trabalhava na área de construção. Também não cuidava de explosivos e dinamites. Ele era um peão de boiada e para esse ofício estava se dirigindo ao arraial da Guarita, montado em seu cavalo Trovão, onde iria pegar, junto com mais três companheiros, uma manada de mais ou menos 150 reses para levar até a Estação da Tartária, onde seriam embarcadas em vagões de trem.

Naquele dia, ele se sentia bem disposto, embora a saudade da mulher e dos filhos apertasse um pouco lá no fundo do coração. A certa altura da viagem, com voz desafinada, mas carregada de sentimento, começou a cantar uma música, cuja letra dizia:

Antigamente nem em sonho existia tantas pontes sobre os rios, nem asfalto nas estradas. / A gente usava quatro ou cinco sinuelos pra trazer o pantaneiro, no rodeio da boiada. / Mas hoje em dia tudo é muito diferente com o progresso nossa gente, nem sequer faz uma ideia. / Que entre outros fui peão de boiadeiro por este chão brasileiro, os heróis da epopeia.

Mais adiante, com Trovão trotando devagar, tirou da algibeira do capote um pedaço de fumo de rolo e, com facão, começou a cortá-lo na intenção de fazer um cigarro. Estando o fumo cortado, enrolou-o numa palha, passando a língua na sua ponta, para que ficasse bem fechada, tomando o cuidado de fazer-lhe uma dobra, para que o fumo não viesse a cair. Continuou cantando os versos da música:

Tenho saudade de rever nas currutelas as mocinhas nas janelas acenando uma flor. / Por tudo isso eu lamento e confesso que a marcha do progresso é a minha grande dor. / Cada jamanta que eu vejo carregada transportando uma boiada me aperta o coração. / E quando olho minha traia pendurada de tristeza dou risada pra não chorar de paixão.

Embalado pela canção, Rolando continuou:

O meu cavalo relinchando pasto a fora que por certo também chora na mais triste solidão. / Meu par de esporas, meu chapéu de aba larga, uma bruaca de carga, um berrante um facão. / O velho basto o sinete e o apero, o meu laço e o cargueiro, o meu lenço e o gibão. / Ainda resta a guaiaca sem dinheiro deste pobre boiadeiro que perdeu a profissão.   

Chegando a este ponto, parece que até Trovão se emocionou, parando e olhando para o horizonte a se perder de vista. Rolando aproveitou para tirar de outro bolso um isqueiro, daqueles alimentados a querosene, para acender o cigarro. O pavio estava muito grande; quando o acendeu, quase lhe queimou o bigode. Rolando pensou: “Mais tarde, tenho que cuidar de abaixar um pouco esse pavio, antes que faça um estrago maior na minha cara.”

E a música terminava assim: 

Não sou poeta, sou apenas um caipira e o tema que me inspira é a fibra de peão. / Quase chorando imbuído nesta mágoa rabisquei estas palavras e saiu esta canção. / Canção que fala da saudade das pousadas que já fiz com a peonada, junto ao fogo de um galpão. / Saudade louca de ouvir o som manhoso, de um berrante preguiçoso... nos confins do meu sertão.

(“Mágoa de Boiadeiro”, composição de Nonô Basílio e Índio Vago)

Assim que terminou a música, Rolando deu como que um suspiro, passando a manga da camisa sobre os olhos. Depois, olhou para o céu, vendo que a tarde chegava. Apressou o trote de Trovão. 

A tarde já ia se escondendo, quando o tempo deu uma revirada; grossos pingos de chuva começaram a cair, acompanhados de relâmpagos e trovões, tomando de susto cavaleiro e cavalo. Rolando tentou se proteger com sua ampla capa e um chapéu de abas largas, mas viu que estava remediando o que era inevitável: logo, logo, acabaria encharcado, já que a chuva passou a ser acompanhada de intensa ventania. O cavalo – apesar do nome - relinchava, refugava, demonstrando toda sua insatisfação em se ver naquela situação que ameaçava ir de mal a pior.

Rolando começou a apelar para os santos de sua guarda de proteção, com o adjutório de São Jerônimo e Santa Bárbara, sabendo que deveria ficar sobre terreno descampado, não podendo contar com ajuda de uma árvore sequer, tendo ciência que, se assim fizesse, poderia ser fulminado por um raio. De repente, avistou uma casa lá no alto da colina, o que parecia ser sede de uma fazendinha.

Rolando se aproximou, um cachorro lá dentro da casa latiu, dando conta de sua presença. Desceu do cavalo, amarrando-o numa estaca sob uma coberta. Bateu com os nós dos dedos na porta:

- Toc-toc-toc.

Nada de resposta.

Passados alguns segundos, repetiu a dose:

- Toc-toc-toc.

Agora, sim, ouviu passos no assoalho; logo depois, um rosto apareceu na porta entreaberta. Era um homem de cabelos e bigode grisalhos. Aparentava uns 60 anos de idade.

- O que o senhor deseja? – perguntou ele, não escondendo seu temor ao ver Rolando, que se apresentava de capa, chapéu e uma barba de muitos dias.

(Para dar um desconto ainda maior ao senhor com sua desconfiança, é preciso dizer que Rolando, mesmo em condições normais, não era um indivíduo de boa aparência, era alto, magro e tinha olhos grandes como duas jabuticabas olho-de-boi.)

- Boas tarde – respondeu Rolando, enquanto tirava o chapéu. – Estava indo pro arraial da Guarita e esta chuva brava me pegou pelo caminho. Como já stá tarde, queria saber se o senhor podia me arrumar um encosto, um lugar onde pudesse passar a noite. Amanhã cedinho, eu me aprumo e vou s’imbora.

O senhor, ainda tomado de desconfiança, falou:

- Tem um paiol ali na frente, onde o senhor poderá passar a noite.

- Brigado, discurpa o incômodo.

- Não tem de quê. – E o senhor completou: Vou levar você até lá.

Os dois caminharam em direção ao paiol, Rolando se apresentou, o senhor também, dizendo se chamar Florêncio Flores. Quis saber de onde era aquele peão.

- Eu sou natural de um povoado chamado Fagundes.

- Pois Fagundes me traz uma boa lembrança – falou Florêncio. - Foi lá que meu irmão sofreu um acidente e quase perdeu a vista. Se não fosse um casal de moradores, a situação não teria jeito.

Tomado de curiosidade, Rolando falou:

- Por acaso seu irmão tem nome de Eleutério?

- Tem, sim – respondeu Florêncio, agora ele tomado de curiosidade. – Por que a pergunta?

- Ora, porque foi justamente minha mulher, Doralice, e eu quem cuidou de seu mano!

- Pelas almas do purgatório! – falou Florêncio, com a voz embargada pela emoção. – Meu irmão sempre fala com carinho da ajuda que vocês lhe deram. Deus é que lhes dê o pago pelo bem que fizeram. Olha – continuou ele, tomando Rolando pelo braço – você irá passar a noite lá dentro de casa. Vou pedir à minha mulher, Feliciana, pra lhe preparar um banho quentinho e uma boa janta.

E assim, depois de deixar Trovão no estábulo, Rolando entrou para a casa de Florêncio, onde passou uma noite com há muito não experimentara. E assim termina esta história, com um final feliz, contrariando tudo o que levava a crer. Rolando Pedregulho tinha um nome e por ele foi reconhecido. Tudo mudou a partir do momento em que foi identificado como aquele morador do Fagundes, casado com Doralice, que havia cuidado de Eleutério, irmão de Florêncio, cuja esposa era a Feliciana. Quando as pessoas são reconhecidas pelo nome, o mundo deixa de ser feio e fica todo florido.

Etelvaldo Vieira de Melo

 

1 comentários:

Anônimo disse...

Etevaldo, uma crônica maravilhosa. O nome Eleutério já me é conhecido de uma outra crônica. Creio ter dado guarita a minha memória. Resumindo: viajei neste texto, a pé e sentindo frio. Parabéns.
Mauro Passos

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