NEM TUDO É O QUE APARENTA SER

Não é que ele fosse uma pessoa extremamente corajosa, mas seu índice girava em torno de 85%, uma marca muito boa para quem morava em cidade em que as casas ainda eram iluminadas por lamparinas abastecidas a querosene.

Certa tarde, em que os últimos raios de sol se escondiam no horizonte e as primeiras sombras da noite começavam a se espalhar pelo céu, estava ele caminhando por uma trilha em meio a um cerrado quando, vindo de certa distância à frente, pareceu ouvir um barulho assim:

- Toc, toc, toc, toc. Chiiii...

Achou que era barulho de vento nas árvores da redondeza, seguiu tranquilo.

Poucos passos à frente, o ruído se repetiu, agora de maneira indubitável:

- Toc, toc, toc, toc. Chiiii...

Suas pernas começaram a tremer, o coração disparou e ele, instintivamente e motivado pelos 15% de covardia, começou a correr em sentido contrário ao som. No entanto, 20 metros adiante, retomando a coragem, ele pensou:

- Não posso fugir desse jeito, como uma criança que teme assombração. Preciso saber o que é isso.

Assim pensando, retomou o caminho e, passo a passo, foi se aproximando daquele barulho estranho:

- Toc, toc, toc, toc. Chiiii...

O ruído foi aumentando cada vez mais, enquanto que o coração parecia não mais caber dentro do peito.

- Toc, toc, toc, toc. Chiiii...

Foi aí que avistou o lago, logo após a curva da trilha. Uma árvore estava tombada à sua margem, com tronco e galhos boiando na água.

Forçando a vista, avistou um pica-pau sobre o tronco. E lá estava ele a bicar: toc-toc-toc-toc. Depois, enfiava o bico na água: Chiii...

Quem me contou esse caso foi um vizinho. Como ele tem a tendência de exagerar as coisas, pode ser que seja invenção sua ou que a história não é bem assim. Mas isso não importa.

Estou me lembrando desse conto, quando tento compreender certas coisas que acontecem na vida da gente.

A vida moderna, não só através da luz elétrica, conseguiu banalizar e jogar no ridículo os mistérios que se escondiam na natureza. Tempos atrás, quando o relógio na igreja tocava as badaladas da meia-noite, o mundo da normalidade ia dormir para que reinasse o da fantasia e do mistério, cheio de suspense e assombrações.

Viver é fazer confronto com o mistério. E o mistério nos assusta porque ainda estamos no tempo da lamparina a querosene em nossas dimensões psicológica e emocional. Somos dominados pelo medo de correr riscos, de enfrentar o desconhecido; preferimos fugir, porque a fuga nos dá uma fugaz sensação de tranquilidade. Por isso não amadurecemos, porque não corremos riscos. Mas a tranquilidade é apenas um sentimento passageiro, porque a fuga é filha do medo de enfrentar os desafios da vida e mãe do mais vil dos sentimentos, a covardia.

De tudo, fica a ideia de que VIVER requer coragem para enfrentar os desafios. Os desafios quase nunca escondem lobisomens e assombrações; pelo contrário, na maioria das vezes, o que você descortina logo após a curva do caminho é um lindo pássaro, pousado sobre os galhos de uma árvore, e uma flor, junto a um regato de águas cristalinas.
Etelvaldo Vieira de Melo 

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