APOSENTADA

Número I
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Vou desligar-me de vez
da poesia
e ver a novela das oito.
Seja o último capítulo
antes do sono, afinal.

Preciso ler Cecília
“onde perdi estas mãos...”
Prefiro ler Drummond
“outoniza-te com dignidade.”
Todo dia, toda hora
sem saber
que estou sendo afastada.

Vou tentar tomar um banho
de pequenas alegrias.
Bem que eu queria
 ser esse pardalzinho
pousando sozinho no fio.

O espelho me aconselha:
fique quieta no canto.
Encele-se.
Mas não nasci
para anjo torto.

Amanhã sem falta
pinto os cabelos brancos
ponho a sombra
sobre os olhos.


Número II

Pudera viajar
perder pátrias e nomes,
porém a fortuna não quer.

Oh, eu não estou morta,
nem escrava do tempo.
Apenas um pouco pálida
para uma sexy-sagenária.

Nada a fazer
senão esperar
a construção da noite
ao som dos comerciais.

É preciso ser solícita
e um tantinho mais lúdica.
É só.








VITAMINA M

Descobriram agora o que pais de antigamente praticavam por ignorância ou necessidade. Então, os filhos eram produzidos em série, quase um por ano, já que não havia ainda sido inventada a pílula e a TV era artigo de luxo. Com a casa infestada de filhos, era a higiene também artigo de luxo. Cresciam as crianças barrigudinhas, quais porquinhos, como queria o antropólogo Darcy Ribeiro. Só que ele as queria gordinhas de saúde, enquanto que esses outros meninos eram assim por uma coletânea de vermes, regularmente expulsos por lombrigueiros administrados nas escolas. Esses lombrigueiros, muitas vezes chamados de purgantes, não tinham a sofisticação e eficiência desses modernos. A criança os tomava às dúzias, ficava tão debilitada que tinha que se ausentar da escola por, no mínimo, uma semana. Os vermes acabavam morrendo, mas a criança quase que ia junto também.
A pílula veio como uma reação em cadeia, aquilo que os sociólogos chamam de causação circular cumulativa, isto é, uma coisa levando à outra, a outra levando àquela. O fenômeno da chamada emancipação feminina provoca o controle da natalidade, uma vez que os filhos se tornam empecilhos para o trabalho da mulher fora de casa; a limitação de filhos, por sua vez, liberta a mulher do jugo doméstico e a lança no mercado de trabalho, que traz a emancipação financeira, que desfaz a dependência psicológica, que tira a mulher de casa e a coloca no mercado de trabalho, que lhe proporciona a independência financeira... Em certo momento da nossa história, o assunto se tornou de tamanha gravidade que um compositor, chamado Odair José, pede, em uma de suas músicas, para que a mulher pare de tomar a pílula. As mulheres haviam fechado a torneira da gravidez e estavam achando aquilo pouco e bom.
Os tempos mudaram e filhos passaram a vir gota a gota. Viraram artigo raro. (A propósito: tudo que é raro é caro? É raro você encontrar um produto bom e barato. Então, um produto bom e barato é caro?... Deixa pra lá.) Os filhos, como produtos raros, passaram a merecer tanto cuidado, viraram objetos de obsessão, especialmente em se tratando de higiene. Agora, parece que reinventam a roda: descobrem que um pouco de sujeira não faz mal a ninguém; pelo contrário, a vitamina S até mesmo fortalece as crianças, criando anticorpos e ajudando o organismo no combate a vermes, vírus e bactérias.
O Russo, assim chamado por causa da cor dos olhos e tipo de cabelo, embora fosse de estatura baixa, é desse tempo de antigamente e criou seus filhos com muita vitamina S. Enquanto trabalhava, era mecânico de fundo de quintal, mas não conseguiu sobreviver, quando os carros trocaram o carburador pela injeção eletrônica. A vitamina que deu a seus filhos era à base de óleo, graxa e tanto produto tóxico que um deles acabou ficando doidão e começou a experimentar outros tipos de drogas. Em uma situação extremada, chegou a aparecer lá em casa, dizendo que outro seu irmão havia morrido e ele estava necessitando de dinheiro para o enterro. E assim foi ele, caindo pelas tabelas, até levar um tiro, ser jurado de morte e se esconder em casa, tomando um pouco de jeito, embora não abandonando definitivamente as drogas e a bebida, ao ponto de, dias desses, cair e quebrar um braço. Os outros filhos, incluindo aí uma menina, ficaram com a mãe, quando ela e Russo se desentenderam definitivamente, ela que havia se convertido e passara a frequentar uma igreja pentecostal, não querendo mais nada com aquele homem que, naquela época, era cheio de vícios.
Conheci o Russo nesses tempos de então, por causa de meu carro, um Fiat 147. Quando se encontraram pela primeira vez, meu carrinho se apaixonou perdidamente, ao ponto de não conseguir ficar mais de uma semana sem visitar a oficina desse eficiente mecânico. Por causa dos dois, tive que frequentar de cabo a rabo e de rabo a cabo umas mais famosas avenidas da cidade, especializada em peças para carros, novas, usadas, recondicionadas e roubadas.
O tempo foi passando e Russo, por ser magro e ter o corpo franzino, parece que nem viu. Deixou de fumar e abandonou a bebida mais pesada, embora continue amigo de uma cerveja. Por ser meio sardento, não aparenta a idade que tem. Sei que já passou dos 65, pois está dispensado de pagar passagem nos ônibus.
Uma vez ou outra a gente se encontra. Sua conversa, vem daqui, vai dali, acaba terminando em assunto de mulher. Durante muito tempo, falava de uma morena, casada com um policial, mas que era sua amante e que queria porque queria ter um filho seu, talvez na esperança de que saísse um moreno de olhos azuis. Muitas vezes, ele chegava a detalhes que me deixavam constrangido, por inveja: “Cara, ontem saímos, pegamos uma sessão de cinema e depois fomos para um motel. Cara, pode parecer conta de mentiroso, mas foram sete vezes...”
De uns tempos para cá, essa morena saiu do ar, mas as mulheres continuam no cardápio de suas conversas. Só que ele anda apelando para mulheres lá do centro da cidade, nas imediações de uma rua famosa pelo baixo meretrício (!). Se for assim, é que a situação está ficando russa, com o perdão do trocadilho, para o Russo.
Pensando bem, isso não importa. Estou vendo que o ser humano necessita de um complexo vitamínico. Não basta a vitamina S. O Russo, por exemplo, necessita de vitamina M.
Outro dia, estávamos conversando e eu lhe falei:
- Estou notando que você tem ido com frequência ao Posto de Saúde do Bairro. Anda doente?
- Que nada! Tenho é ido buscar remédio para meu filho!
Vida longa pra você, Russo. Não se esqueça de suas vitaminas!
Etelvaldo Vieira de Melo   
  

Indio desenho Indio
Imagem: www.fotosimagens.net
                                       

ODE AO ÍNDIO









No dia 19 de abril, comemoramos o alegre Dia do Índio. Somente nessa data saudamos os peles-vermelhas, porque as outras são dedicadas aos caras-pálidas. Durante o resto do ano, os posseiros invadem as reservas indígenas, roubando e matando homens, mulheres e crianças. Quando não há chacina, há venda de bebidas e armas de fogo em troca do ouro e das matas.
Naturalmente que há de haver um dia consagrado aos índios: existe sempre uma data comemorativa também para a árvore, a mulher, o negro. Todos os elementos considerados fracos e oprimidos merecem a marquinha no calendário.
No dia 19 de abril, vestindo terno e gravata, um juruna desce a rampa do Palácio do Planalto, acompanhando a comitiva presidencial. Todos soltam muitos foguetes, a TV Globo comparece ao local, o público aplaude com entusiasmo. Mais tarde tem coquetel com uísque e salgadinhos. Os deputados fazem solenes discursos, prometem ajudar as tribos, através da reforma constitucional. Dando entrevista, o chefe pataxó responde ao repórter: “Se a gente não se Raoni, a gente se Sting.”
Depois de toda a festança, as coisas voltam ao normal. Amanhã os jornais anunciam, em letra miudinha, que os ianomâmis foram destroçados pelos grileiros, conquistadores de terras.


TEORIA DO DOMÍNIO FINAL DO CHAVÃO

Olhando a olho nu para o termo, sem os recursos tecnológicos e microscópicos da etimologia, da semiótica, linguística ou outros bichos da ciência da linguagem, “chavão” parece ser um objeto de grandes proporções, capaz de abrir portas sólidas, pesadas, robustas. Sugere também tratar-se de uma chave que serve para vários tipos de fechaduras.
Assim sendo, por analogia, o chavão se presta a várias situações, desde servir como um “Abre-te, sésamo” de Ali Babá, até de ser usado como justificativa para algo que ainda não encontrou uma explicação racional, por mínima ou razoável que seja.
Como se vê, o chavão vem a ser aquele argumento, aquela ideia ou expressão tão conhecida e repisada, que acaba virando clichê; quando cai no gosto da plebe, vira dito popular. Como o próprio ditado explica: água mole em pedra dura, tanto bate, até que fura... ou a água acaba.
Certos chavões, na qualidade de ditos populares, precisam ser reescritos ou revistos. Certa vez, em uma viagem, tive problemas mecânicos com o carro, que foi encaminhado para uma oficina, enquanto eu ia pernoitar em determinada cidade. Lá no hotel, o recepcionista quase não fez exigência, pois foi logo explicando:
- Você é uma pessoa legal.
- Como você sabe que sou uma pessoa boa? – perguntei, curioso.
- Ora – retrucou o rapaz, dando uma boa risada, - está na sua cara que você é um sujeito bacana.
Aquilo me deixou muito envaidecido, já que eu estava contrariando frontalmente aquela máxima popular de que “quem vê cara, não vê coração”. Hoje em dia, por causa das plásticas e do botox, tornam-se até mesmo algo incompreensível esses versos de Raimundo Correia: “Se a cólera que espuma, a dor que mora / N’alma e destrói cada ilusão que nasce / Tudo o que punge, tudo o que devora / O coração no rosto se estampasse”. Em tempo, a cirurgia plástica tem dificultado a linguagem da expressão corporal, tornando por demais verdadeiro esse chavão de que “quem vê cara, não vê coração”, deixando como alternativa esse outro, “os olhos são o espelho da alma”, desde que o referido não use lentes de contato coloridas.  
Tempos não tanto atrás, atravessamos a turbulência de um período eleitoral, com as ruas e as caixas de correio infestadas de “santinhos”, as calçadas entupidas de cavaletes, os ouvidos tendo que suportar a poluição sonora de carros de som, vomitando pelas ruas os bordões, os clichês e slogans de candidatos. Ah, que saudade de tempos outros em que as propagandas eram feitas através de cartazes fixados em postes! Não havia essa profusão de cavaletes disputando espaço com transeuntes nas calçadas, “santinhos” entupindo as caixas de correio e até mesmo provocando acidentes fatais, carros de som ferindo nossos ouvidos com promessas demagógicas. Os postes deixavam de ser alvo preferencial de cães vira-latas e passavam a ser disputados a tapas por pretendentes aos cargos eletivos. (Havia um que se tornou conhecido como “João do Poste”. A cada quatro anos, lá estava ele, com a mesma fisionomia e o mesmo sorriso, pregado nos postes da cidade.) Para eles, os postes, ficava o dilema existencial de saber quem lhes tinha maior afeição: se o cão no ato de mijar, se o político em véspera de eleição. Falo de eleição porque é nesse período que pululam os chavões da política: “Vote consciente, o Brasil merece!” “O destino do país está em suas mãos!”
Já disse uma vez e volto a repetir: nosso sistema político é jogo de cartas marcadas, que filhos recebem dos pais, quem está fora dificilmente entra, quem está dentro dificilmente sai. Nesse jogo, vale o poder do dinheiro, os conchavos a troco de perdão, a voz do povo sendo manipulada através de pesquisa marcada, que quase dispensa eleição. E chamam isso de democracia! E falam que o povo merece os representantes que tem. Como se fosse dada a ele a possibilidade de um voto consciente, com candidatos paraquedistas e um horário eleitoral ridículo. Em resumo, o povo faz milagre quando deixa de escolher o menos ruim, se é que pode existir alguma coisa que preste nesse “sistema” em que estamos confinados.
Em meio a tanto foguetório, o STF soltou um petardo que bem poderia ser usado em Copacabana, por ocasião do Réveillon. Tudo aconteceu durante o julgamento da protelada Ação Penal 470, afetuosamente apelidada de Mensalão.
Todo mundo sabe, sabendo eu menos que todo mundo, que uma tal de Teoria do Domínio do Fato foi usada para a condenação de certas pessoas. Sem provas materiais, os réus foram condenados com base em evidentes evidências.
Não sou juiz, não estou aqui para condenar ou absolver ninguém. Só espero, como cidadão, que a Justiça deixe de ser cega, abra bem os olhos e pare de correr atrás das “arraias miúdas" ou de determinadas espécies de peixes, que ela possa também atingir tubarões e aqueles apadrinhados por uma elite que parece odiar o povo. Espero que essa tal de TDF não se torne mais um chavão a ser usado para atender as conveniências de quem quer que seja!
Como cidadão, quero estar feliz com meu país, sentir orgulho da classe política, vendo o Bem Comum sendo colocado acima de interesses pessoais e corporativos, os jornais já não sendo invadidos por enxurradas de notícias de corrupção e de mau uso de dinheiro público; quero me orgulhar com o nosso sistema judiciário, não mais permitindo que bandidos sejam beneficiados por habeas corpus e indultos, a justiça prevalecendo para todos. É simples o que desejo, porque é o certo. Isso é um sonho, uma utopia? Pode ser, mas as pessoas que cuidam do bem público têm maior visibilidade, elas são referências, espelhos para as outras. È bom que elas deem exemplo, um bom exemplo. Como diz um chavão e que deveria ser preservado: se todos cuidassem de varrer a porta de suas casas, a rua ficaria limpa. O povo deve ser educado para isso e as pessoas públicas são os professores responsáveis por ensinar essa lição, com palavras e exemplos de vida.
Etelvaldo Vieira de Melo

“Não se podem contar as luas
que brilham em teus telhados
nem os mil sóis esplêndidos
que se escondem
por trás de teus muros.”
(Saeb-e-Trabivi, poeta persa século XVII)

A gente tem muitas luas
e as luas, muitas fases:
sob a fuga dos relógios
alguns momentos fugazes.

0037292fb 650x433 Fotos da Lua Cheia em noite de superlua
Imagem: www.uhull.com.br (Takashashi / Scotland)
Segue a lua em suas fases,
segue a gente com suas frases
mordazes.

(A cada metro uma dor                      
a cada légua uma flor)

Tão juntas, a gente e as luas
raios, súbitas tenazes
mil luas se confundindo
a gente se consumindo
pelas ruas e os acasos.


ATRAÇÃO FATAL

Já estava eu cometendo um deslize ao associar o título acima com um filme homônimo, julgando ser aquele estrelado por uma atriz capaz de provocar os mais libidinosos instintos, a estupenda Sharon Stone. Em tempo, dei-me conta que a personagem em questão, com o devido respeito para com a atriz, Glenn Close, aparece mais para Repulsa Fatal do que atração propriamente. Sharon é protagonista de “Instinto Selvagem”.

Feito o reparo e estando tudo em conformidade com os trâmites legais, vamos às considerações em torno do conceito “atração fatal”.

Ele tem o sobrenome de Amador, mas isso só no nome, pois se trata, na verdade, de um grande profissional. Assim como existe o músico de sete instrumentos, ele pode ser considerado um polivalente, realizando bem qualquer tipo de trabalho, embora sua profissão originária seja a de carpinteiro. Sua aparência física lembra a do excepcional ator Morgan Freeman, que foi descoberto para o cinema – infelizmente – já com mais de 40 anos e que conheci através do filme “O Poder de Um Jovem”. Mas ele é personagem de outros sucessos como “Conduzindo Miss Dayse” e “Um Sonho de Liberdade”.

Pouco tempo atrás, trabalhando como carpinteiro, Amador sofreu um acidente quando, ao bater um prego numa peça de madeira, esse saiu voando e atingiu seu olho direito. Foi coisa séria, que quase o deixou completamente cego, uma vez que não enxergava lá essas coisas com a vista esquerda. Escrevendo essas lembranças, ocorre-me também a do filme “Perfume de Mulher”, estrelado por Al Pacino, outro excepcional ator, que se destacou em “O Poderoso Chefão”, “Scarface”, “Um Dia de Cão”.

Ao contrário do personagem cego de “Perfume”, que carregava um sentimento de revolta muito grande, Amador vivenciou seu drama com muita dignidade. Nas vezes em que nos encontramos, ele cuidava de explicar cientificamente seu acidente e seu processo de recuperação. Sou péssimo para guardar detalhes, mas eu me lembro de ter ele mencionado como o prego havia perfurado a córnea e atingido o cristalino. Mostrava, tampando ora a vista direita, ora a esquerda, seu índice de visão, sempre em base percentuais, tentando explicar como as imagens eram captadas fora de foco. Em resumo, ele não enxergava praticamente nada, tinha que usar óculos escuros, pois a luz solar lhe era insuportável, ficava quase o tempo todo em casa, só saindo para as consultas com os oftalmologistas. Em nenhum momento eu ouvi de sua boca uma palavra de ressentimento ou revolta.

Ele tinha muitos motivos para se sentir revoltado, pois, infelizmente, ainda vivemos em um país onde as pessoas que dependem do atendimento público estão sujeitas a todo tipo de humilhação e pouco caso. No final de seu drama, que se arrastou por anos, acabou ele colocando um cristalino artificial, procedimento que poderia ter sido feito logo após o acidente.

Caso soubesse que estou escrevendo essas coisas a seu respeito, tenho certeza que daria boas risadas com aquela sua voz grave, diria que sou uma pessoa exagerada, que seu drama não tinha sido nada. Como dizer que não foi nada? – pergunto eu. Amador, além de carpinteiro, é um exímio pedreiro, cantor, violeiro, eletricista, inventor. A perda da visão acabou lhe roubando tudo isso.

Para dizer a verdade, não sei de onde ele tirou forças para enfrentar seu drama. Gostaria muito de saber, eu que, por qualquer bobagem, sou tomado por depressão e sentimento de que não vale a pena viver.

A coisa toda se confunde ainda mais na minha cabeça, quando penso do que ele se privou durante esse tempo de cegueira. Amador tinha uma atração fatal, uma fixação por Ferro Velho. Aqui mesmo perto de casa existe um, que ele visitava religiosamente toda semana. Nesse e em outros que encontrava nas suas andanças, ele vasculhava em busca de motores, peças, móveis, coisas aparentemente vulgares. Sempre encontrava algo que, por suas mãos era transformado em invenção ou objeto de arte. Amador acaba me mostrando que é muito pouco o que pode nos tornar felizes. Mas é preciso ter atração fatal, isto é, fazer as coisas com amor. Só isso.
Etelvaldo Vieira de Melo 
           
             
   



POEMA DO VAIVÉM-VOLTA
- 1 –
Neste oco
do bloco
escreva a palavra
coco.

- 2 –
Neste oco
do coco
escreva a palavra
água.

- 3 –
Neste oco
da água
escreva a palavra
jogo.

- 4 –
Neste oco
do jogo
escreva a palavra
vida.

- 5 –
Neste oco
da vida
escreva a palavra
sorte.

- 6 –
Neste oco
da sorte
escreva a palavra
nada.

- 7 –
Neste nada
do oco
escreva a palavra
coco.
Imagem: lucianoloiola.blogspot.com

COVARDE? NÃO! SÓ UM POUQUINHO MEDROSO...
Para Sandra, companheira nestas aventuras e na vida, que - num dia 8 de abril - tornou o mundo ainda mais florido.

Houve um tempo em que cavalo fazia a vez de automóvel. Parece que, já então, acontecia problema de estacionamento, se for para dar crédito ao dito “onde fui amarrar a minha égua”.
Pensando bem, ao mesmo tempo em que presto ajuda a todos aqueles desconhecedores dessa espécie animal, a dos equinos, vejo que a expressão nada mais representa do que você, de repente, perceber que tomou uma decisão errada e não sabe como resolvê-la de forma satisfatória. Quanto aos cavalos e éguas, a preocupação procede, pois vivemos numa civilização urbana e muitos animais nos são desconhecidos. Minha filha, por exemplo, ainda menina, ficou traumatizada e quase teve que fazer tratamento psiquiátrico, quando viu uma vaca e ficou sabendo que era dali que vinha o tão adorável leite de sua mamadeira. Nem quis saber: seu leite tinha que ser o da caixinha. Também tive um pretendente a namorado que, visitando o sítio onde eu morava e tentando ser agradável com meu pai, perguntou-lhe, apontando para um boi, como se fazia para tirar dali o leite.
Veja você como tudo deve ser explicado com detalhes, quando uma comunicação é estabelecida entre duas pessoas. Tenho um primo que teve uma adolescência muito perturbada. Na escola, vivia causando dificuldades aos professores. Até o dia em que foi chamado à sala do diretor:
- Os professores pediram para que eu lhe dissesse que você é um jovem auto-suficiente, indiferente, um energúmeno, tetrápode e revoltado – o diretor leu de um papel.
O jovem se assustou com tantos termos desconhecidos, não sabendo definir se eram palavras de elogio, de crítica ou se tudo aquilo queria esconder uma doença contagiosa e incurável.
- Pode ficar tranquilo quanto à questão de doença; quanto ao resto, nem mesmo sei o que quer dizer – tentou explicar o diretor. – Mas foram essas as palavras que eles usaram.
- Meu primo saiu da sala, assim meio preocupado, meio satisfeito. A partir de então, seu comportamento tornou-se melhor, entendendo ele que as palavras dos professores tinham sido elogiosas. É por essa e outras que a gente vê como a escola exerce um papel tão relevante em nossa formação moral, cultural e social.
Quanto ao ditado “onde fui amarrar a minha égua”, ele me ocorre com a lembrança de meu marido e dois fatos, um ocorrido quando éramos noivos e, o outro, quando nossa filha estava com cinco anos.
Tínhamos um carro Gol da Volkswagen, um modelo antigo com dois carburadores e só um mecânico era capaz de regulá-los, isto é, colocá-los no ponto. Resumindo, era uma porcaria de carro. Foi nesse carro que fizemos uma viagem de férias, eu como motorista, já que meu marido não dirige. Na volta, ao cruzarmos por uma carroça, senti um cheiro de vela. Olhei para o capô do carro e percebi que saía fumaça. Levei o carro até o acostamento. Estava um pouco assustada, já que minha filha estava no banco de trás e eu senti que algo de ruim estava acontecendo. Quando parei o carro, quis falar pro meu marido para que tirasse a nossa filha, mas vi com espanto que ele já não se encontrava dentro do carro: estava a uns trinta metros de distância! Felizmente, nada de mais grave aconteceu, a não ser o susto com a fumaça e a tampa do radiador indo para os ares. Para não dizer outra coisa, falei pro meu marido:
- Impressionante seu instinto de sobrevivência! Não pensou duas vezes em nos deixar sozinhas, eu e sua filha, enquanto procurava salvar a sua pele!
A outra vez aconteceu quando ainda estávamos namorando. Ele havia construído uma casa em um bairro afastado e o acesso era feito através de ônibus, que tinha ponto em local um pouco distante. Ele me mostrou a casa, já praticamente pronta, estando inclusive mobiliada. Tudo aquilo mostrava a seriedade de seus propósitos, o que me deixava alegre e envaidecida. Estávamos já de saída quando o tempo fechou por completo, relâmpagos cortavam os ares, acompanhados de trovões assustadores. Quando comecei a subir a rua, pois a casa estava construída numa descida, procurei pelo meu namorado e ele já estava lá em cima, já na outra rua em direção ao ônibus.
Foi, então, que eu pensei com meus botões: “Onde estou indo amarrar minha égua?”. Pensei, fugazmente, que talvez eu iria me casar com um covardezinho. Só que, depois, ele me explicou que não se tratava de covardia, mas de um pequeno receio, um pouquinho de medo, coisa à toa. Ele me falou também de seus traumas de infância, quando as chuvas invadiam sua casa lá no interior, pobre e desprotegida, o vento ameaçando arrancar o telhado, as goteiras, a reza do terço, um rosário em formato de “eme” disposto sobre a mesa, a vela acesa por intercessão de São Jerônimo e Santa Bárbara, as peneiras atrás das portas para aparar o vento, os raios e trovões fazendo com que se escondesse debaixo da cama... Bom, com tantos esclarecimentos, acabei me casando com ele, porque, quando tudo é explicado, fica mais fácil entender.
Etelvaldo Vieira de Melo