VITAMINA M

Descobriram agora o que pais de antigamente praticavam por ignorância ou necessidade. Então, os filhos eram produzidos em série, quase um por ano, já que não havia ainda sido inventada a pílula e a TV era artigo de luxo. Com a casa infestada de filhos, era a higiene também artigo de luxo. Cresciam as crianças barrigudinhas, quais porquinhos, como queria o antropólogo Darcy Ribeiro. Só que ele as queria gordinhas de saúde, enquanto que esses outros meninos eram assim por uma coletânea de vermes, regularmente expulsos por lombrigueiros administrados nas escolas. Esses lombrigueiros, muitas vezes chamados de purgantes, não tinham a sofisticação e eficiência desses modernos. A criança os tomava às dúzias, ficava tão debilitada que tinha que se ausentar da escola por, no mínimo, uma semana. Os vermes acabavam morrendo, mas a criança quase que ia junto também.
A pílula veio como uma reação em cadeia, aquilo que os sociólogos chamam de causação circular cumulativa, isto é, uma coisa levando à outra, a outra levando àquela. O fenômeno da chamada emancipação feminina provoca o controle da natalidade, uma vez que os filhos se tornam empecilhos para o trabalho da mulher fora de casa; a limitação de filhos, por sua vez, liberta a mulher do jugo doméstico e a lança no mercado de trabalho, que traz a emancipação financeira, que desfaz a dependência psicológica, que tira a mulher de casa e a coloca no mercado de trabalho, que lhe proporciona a independência financeira... Em certo momento da nossa história, o assunto se tornou de tamanha gravidade que um compositor, chamado Odair José, pede, em uma de suas músicas, para que a mulher pare de tomar a pílula. As mulheres haviam fechado a torneira da gravidez e estavam achando aquilo pouco e bom.
Os tempos mudaram e filhos passaram a vir gota a gota. Viraram artigo raro. (A propósito: tudo que é raro é caro? É raro você encontrar um produto bom e barato. Então, um produto bom e barato é caro?... Deixa pra lá.) Os filhos, como produtos raros, passaram a merecer tanto cuidado, viraram objetos de obsessão, especialmente em se tratando de higiene. Agora, parece que reinventam a roda: descobrem que um pouco de sujeira não faz mal a ninguém; pelo contrário, a vitamina S até mesmo fortalece as crianças, criando anticorpos e ajudando o organismo no combate a vermes, vírus e bactérias.
O Russo, assim chamado por causa da cor dos olhos e tipo de cabelo, embora fosse de estatura baixa, é desse tempo de antigamente e criou seus filhos com muita vitamina S. Enquanto trabalhava, era mecânico de fundo de quintal, mas não conseguiu sobreviver, quando os carros trocaram o carburador pela injeção eletrônica. A vitamina que deu a seus filhos era à base de óleo, graxa e tanto produto tóxico que um deles acabou ficando doidão e começou a experimentar outros tipos de drogas. Em uma situação extremada, chegou a aparecer lá em casa, dizendo que outro seu irmão havia morrido e ele estava necessitando de dinheiro para o enterro. E assim foi ele, caindo pelas tabelas, até levar um tiro, ser jurado de morte e se esconder em casa, tomando um pouco de jeito, embora não abandonando definitivamente as drogas e a bebida, ao ponto de, dias desses, cair e quebrar um braço. Os outros filhos, incluindo aí uma menina, ficaram com a mãe, quando ela e Russo se desentenderam definitivamente, ela que havia se convertido e passara a frequentar uma igreja pentecostal, não querendo mais nada com aquele homem que, naquela época, era cheio de vícios.
Conheci o Russo nesses tempos de então, por causa de meu carro, um Fiat 147. Quando se encontraram pela primeira vez, meu carrinho se apaixonou perdidamente, ao ponto de não conseguir ficar mais de uma semana sem visitar a oficina desse eficiente mecânico. Por causa dos dois, tive que frequentar de cabo a rabo e de rabo a cabo umas mais famosas avenidas da cidade, especializada em peças para carros, novas, usadas, recondicionadas e roubadas.
O tempo foi passando e Russo, por ser magro e ter o corpo franzino, parece que nem viu. Deixou de fumar e abandonou a bebida mais pesada, embora continue amigo de uma cerveja. Por ser meio sardento, não aparenta a idade que tem. Sei que já passou dos 65, pois está dispensado de pagar passagem nos ônibus.
Uma vez ou outra a gente se encontra. Sua conversa, vem daqui, vai dali, acaba terminando em assunto de mulher. Durante muito tempo, falava de uma morena, casada com um policial, mas que era sua amante e que queria porque queria ter um filho seu, talvez na esperança de que saísse um moreno de olhos azuis. Muitas vezes, ele chegava a detalhes que me deixavam constrangido, por inveja: “Cara, ontem saímos, pegamos uma sessão de cinema e depois fomos para um motel. Cara, pode parecer conta de mentiroso, mas foram sete vezes...”
De uns tempos para cá, essa morena saiu do ar, mas as mulheres continuam no cardápio de suas conversas. Só que ele anda apelando para mulheres lá do centro da cidade, nas imediações de uma rua famosa pelo baixo meretrício (!). Se for assim, é que a situação está ficando russa, com o perdão do trocadilho, para o Russo.
Pensando bem, isso não importa. Estou vendo que o ser humano necessita de um complexo vitamínico. Não basta a vitamina S. O Russo, por exemplo, necessita de vitamina M.
Outro dia, estávamos conversando e eu lhe falei:
- Estou notando que você tem ido com frequência ao Posto de Saúde do Bairro. Anda doente?
- Que nada! Tenho é ido buscar remédio para meu filho!
Vida longa pra você, Russo. Não se esqueça de suas vitaminas!
Etelvaldo Vieira de Melo   
  

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