A MÃE, SUAS NORAS E OS FILHOS DA MÃE NA NOITE DO
DIA DAS MÃES
Foi naquele restaurante
sofisticado que se reuniram para comemorar o Dia das Mães. A reserva havia sido
feita pelo filho mais novo.
Rúbia se sentia um pouco
incomodada com a presença das noras; já havia notado, há tempos, uma certa
resistência com relação à sua pessoa. Ela se perguntava se não era ciúme, medo que
elas tinham de compartilhar os maridos. Julgava aquilo uma bobagem muito grande,
mas não havia encontrado meios de quebrar aquela barreira. Agora que estavam
todos ali, quem sabe não seria a ocasião de derreter aquele gelo. Pensando
nisso, seu olhar ia de um filho ao outro, ela se sentindo orgulhosa de vê-los
bonitos e bem sucedidos. Por quanto tempo ficou assim embevecida, não sabia
precisar. Tudo durou até o momento em que percebeu os olhares rancorosos das
noras em sua direção. Foi aí que baixou os seus, modestamente, para o
guardanapo sobre a toalha da mesa.
Dionísio, o filho mais novo,
conversava com o garçom. Este estava lhe explicando:
- Como
você pediu um vinho envelhecido, tive o cuidado de deixá-lo aerando por cerca
de duas horas. Ele será servido em um decanter numa temperatura entre 16 e 18 º
C. Tudo bem?
-
Ótimo – falou Dionísio, enquanto que, distraidamente, pegou a taça que estava à
sua frente pela haste com a mão esquerda e deu-lhe um toque com a unha do dedo
indicador da mão direita.
Torradas haviam sido
servidas, juntamente com pastas de tomate seco. Adriano, o filho mais velho, enquanto
comia uma torrada, estava pensando: “Eu não devia permitir que meu irmão
tomasse a iniciativa de tudo isso. Para mim, seria ótimo que o cardápio fosse à
base de massas e cerveja”.
Dionísio parecia ler seu
pensamento. Foi então que estabeleceu, mentalmente, um diálogo com o irmão:
-
Você precisa aumentar um pouco seu nível cultural. Pensa que tudo isso é
bobagem?
-
Não penso – respondeu Adriano, na imaginação de Dionísio. – Pode dar uma de
enólogo e me explicar didaticamente o que acontece.
-
Que ótimo. Veja bem. Um bom vinho, quando exposto ao oxigênio do ar, sofre
ações benéficas, liberando mais intensamente seus aromas e aprimorando seus
aspectos gustativos. A aeração ou respiração do vinho é feita justamente para
que ele mostre a sua estrutura e complexidade de aromas. Ela deve durar de 1 a
3 horas e pode ser feita num decantador ou decanter, expressão em inglês, e que
se presta, também, para acomodar os sedimentos ou borras acumulados no fundo da
garrafa. Nosso vinho será servido num decanter.
-
Dionísio, estou observando garçons limpando gargalos de garrafas com panos. Por
que eles fazem isso?
- A
cápsula que envolve a tampa da garrafa pode ser removida com um acessório
chamado corta-cápsulas ("foil-cutter").
Essa cápsula é feita de chumbo, um material tóxico; daí, a necessidade de se
limpar bem com um pano o gargalo da garrafa. Um detalhe importante diz respeito
ao saca-rolha. Sua haste não pode ser como um parafuso, mas deve aparentar o
rabo de um porco, com passes longos, para que abrace firmemente a cortiça e não
esfarele a rolha. É importante também que ela seja revestida de teflon.
Enquanto assim
dialogavam, o garçom se aproximou com a jarra de vinho. Dionísio pegou sua taça
pela haste. Assim que foi servido, ele ergueu a taça contra a luz e a agitou em
movimento giratório. Enquanto isso, explicava ao irmão:
- Segurando a taça pela
haste, evito que o calor da mão aqueça o vinho e altere sabores e aromas
característicos; erguendo a taça contra a luz, observo a intensidade da cor, se
é mais fechada ou transparente; quando a agito em movimentos giratórios, estou
oxigenando a bebida, fazendo com que libere mais facilmente todos os aromas.
Com esse movimento, também percebo a viscosidade do vinho, suas “lágrimas” e
seu corpo. Agora, estou inclinando a taça contra um fundo branco, meu próprio
guardanapo, e vejo que nosso vinho apresenta uma cor
acastanhada e aquosa, com claros sinais de evolução.
- A explicação
está ótima, mas não haveria meios de finalizá-la?
- Que seja. Um
vinho se toma através de três etapas. Visualmente, observe se ele é límpido,
brilhante, transparente. Note os tons dos reflexos, as lágrimas, os filetes
viscosos que escorrem pela parede interna da taça, ao agitá-la. Quanto mais
numerosas forem as lágrimas, mais alcoólico é o vinho. Esse apresenta um tom
acastanhado, porque se trata de um vinho evoluído, envelhecido. A etapa
olfativa talvez seja a mais rica da degustação. Deixo para que você possa
desvendar pessoalmente aqueles aromas primários, originários da própria fruta,
como os de frutas ou flores; os aromas secundários, aqueles produzidos durante
o processo de elaboração do vinho e que apresentam várias espécies de famílias:
frutada, floral, herbácea, vegetal, mineral... e, finalmente, os aromas terciários,
os chamados buquês e que representam a evolução na garrafa de todos os aromas
anteriores. A última etapa é a degustação e você verá que o sabor doce é
percebido na ponta da língua; o ácido, nas laterais e o amargo, no fundo da
língua. Um bom vinho, no caso dos tintos, é aquele que apresenta equilíbrio
entre tanino, acidez e álcool. Em resumo, seu tanino deve ser macio ou
elegante, sua acidez adequada - que irá lhe conferir exuberância e vivacidade -
e um teor alcoólico que não provoque calor e ardência na boca.
Depois desse ritual todo e
dessa conversa imaginária com o irmão, Dionísio deu parecer de aprovação ao
garçom. O prato principal foi servido, Fondue de Carne, acompanhado dos molhos
tartare especial, chutney de alho, quatro queijos e molho de ervas.
Enquanto Adriano, que já
havia dado conta praticamente sozinho das torradas, atacava ferozmente as carnes,
os molhos e a bebida e Dionísio quase que só tomava vinho, como se estivesse
num ato religioso, as três mulheres comiam e bebiam com moderação e aparente
afetação.
No final, encerrando a
sessão, sem que nenhuma das partes reclamasse, a conta foi pedida. O garçom,
prestativo, a trouxe numa bandeja.
Adriano olhou-a de relance
e disse:
- Passo.
Entregou a conta ao irmão
Dionísio, que a olhou curioso e disse:
- Passo.
Finalmente, ela chegou às
mãos de Rúbia, motivo daquele encontro e comemoração. Ela olhou o valor da
nota, sentiu um aperto no coração, mas armou-se de coragem para abrir a bolsa e
retirar dali o valor que deveria ser pago.
Todos voltaram para suas
casas felizes e contentes. Quer saber se o gelo entre mãe e noras foi quebrado?
Não é possível dizer que sim, uma vez que a história se passa em noite do mais
rigoroso inverno.
Etelvaldo Vieira
de Melo
OBS:
Dados sobre vinhos coletados em www.adegadovinho.com.br (recomendo
especialmente o capítulo “Não se torne um enochato”).
2 comentários:
Etelvaldo.
Fiquei impressionada com o seu conhecimento de vinhos. Acho até que pode se tornar um chef.
Eu
Um enólogo entre os amigos. Mas, dando uma de "conosseur", pergunto: por que fazemos tin tin ao tomar vinho? Para que o vinho se torne a bebida dos cinco sentidos: visão, pela cor; olfato, porque o cheiramos; tato, pegando na taça; paladar, porque o bebemos. Só faltava a audição. Então veio o "tintin"...Favor não quebrar a taça na minha cabeça, senão eu ficaria com o sexto sentido: sem sentidos.
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