NIVER


Minha netinha Ana Clara,
Imagem: comodecorar.blogspot.com
A mais formosa das rosas,        
Fazes hoje aniversário
Numa festa bem gostosa.

São cinco anos de vida,
Da peixinha em seu aquário.
A distância é bem comprida:
São Luís, o itinerário.

Escuta, flor, a ditosa
Lição que a avó te confia:
O segredo é o presente.

Isto te dou: o presente.
Vive o amor que te estende
A nossa grande alegria.


NOME, PRONOME, SOBRENOME

 No belo poema “Minha História”, Chico Buarque fala de um amor bandido onde a mulher, após ser abandonada pelo amante, fica “com o olhar cada dia mais longe, parada, pregada na pedra do porto”. Quando, enfim, nasce o bebê, não se sabe se por ironia ou por amor, resolve chamá-lo com o nome do Nosso Senhor. E a história do personagem passa a ser esse nome que carrega consigo.
O nome é algo tão pessoal, íntimo, que só deveríamos dizê-lo para as pessoas próximas, como fazem os orientais. Em muitos países, acredita-se que saber o nome de uma pessoa é ter um domínio sobre ela.
Creio que não existe sangue oriental correndo em minhas artérias e veias, mas concordo com essa reverência ao nome. Ele expressa nossa individualidade, ele nos identifica como seres únicos e originais. Como a sociedade moderna evoluiu para os grandes centros urbanos, intensas transformações e o rompimento com valores tradicionais geram o que especialistas chamam de anomia, que é a desintegração das normas sociais. Esse estado anômico, de contradição entre as normas sociais e de ausência de valores, com certeza, é uma das matrizes das manifestações e passeatas ocorridas em cidades do Brasil durante o mês de junho de 2013. Outra consequência da concentração em grandes centros urbanos é o anonimato, que é a perda do nome, da assinatura própria, com a identidade ficando escondida. Hoje, o nome perdeu a sua razão de ser e as pessoas passaram a ser identificadas por números: os do CPF, do RG, do Cartão de Crédito, da Conta Bancária, do número do apartamento. Daí, a solidão corroendo a vida das pessoas e só indo embora quando elas são identificadas pelo nome, quando re-conhecidas.
Sempre procuro designar com os nomes as pessoas de minhas relações, mesmo aquelas estritamente profissionais. Quando sou atendido por alguém, minha primeira preocupação é saber “qual é mesmo o seu nome?”. Agindo assim, espero estar confrontando o sistema, tornando as comunicações mais humanas.  
O nome da mãe de minha parceira de blog era Maria das Dores. Ela diz que foi o maior sofrimento carregá-lo pela vida. Quando se casou, tratou logo de jogar as Dores fora. Quando nasceu uma filha, quis, pelo nome, que tudo lhe fosse diferente. Registrou-a como Graça, Maria da Graça.
Quando nasceu minha filha, a minha esposa deu-lhe o nome de Júlia (ela havia assistido a um filme, “Júlia” - dirigido por Fred Zinnemann, estrelado por Jane Fonda e Vanessa Redgrave, que havia lhe deixado forte impressão). Receosos de que sofresse bullying na escola, em especial nas aulas de Matemática, por causa das iniciais com as quais poderia ser identificada, JCM - (juros e correção monetária), resolvemos adicionar “Mara” ao nome, mal sabendo que tal palavra (em hebraico: Marah) significa “amarga”. Mas tudo bem que ela se tornou exceção (e como é bom saber que toda regra tem exceção), sendo um doce de menina.
Na minha família, depois de muitos nomes triviais, meus pais, assim que nasci, confabularam:
- Vamos colocar um nome diferente em nosso filho. Quem sabe, assim, sai algo que presta.
Escolheram Etevaldo, um nome bastante raro. O escrivão da cidade, movido por algumas doses etílicas, resolveu radicalizar e torná-lo único: acrescentou um “l”, tornando-me Etelvaldo. Tenho comigo, desde que me entendo por gente, que devemos nos conformar ao destino (maktub!), já que tudo poderia ser pior do que é. Imagina se o teor alcoólico fosse maior e o escrivão enxergasse um tanto de “l” - Eltelvaldol! Creio que não teria sobrevivido até a idade hábil para efetuar uma mudança, eu que, até minha adolescência, havia contabilizado mais de 50 apelidos!
No fundo, eu gostaria de passar a ideia de é preciso recuperar a humanidade do ser humano. Como diria Charles Chaplin, nós não somos máquinas, não somos números! O primeiro passo seria o de abolir as senhas secretas, os códigos e os números, com as pessoas sendo identificadas e tratadas por seus nomes. Como o mesmo Chaplin diz: “Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido.”

Etelvaldo Vieira de Melo     

TIA TEREZA


A primeira vez
Imagem: baudaweb.blogspot.com 
em que eu vi tia Tereza
ela cantava um dueto com Zé Gato       
no teatro de Saltimbanco.
(Nem toda sua paixão
pôde tirar Zé Gato da cisterna
onde caíra,
embriagado de cachaça e lua).

A segunda vez
em que eu vi tia Tereza
ela arrastava os tamanquinhos,
açoitava o motor da luz
para que funcionasse
e cuidava dos pais doentes.
(Chico de Tal lhe propôs casamento,
mas ela apenas o apartou com os olhos).

A terceira vez
em que eu vi tia Tereza
ela vestia branco
sobre uma mesa branca
enquanto os gatos
faziam-lhe serenata
miando de alegria
na ruela do cemitério.



I GIORNO DELL'IRA!I

Inocêncio Coitadinho Sossegado de Oliveira não era o que poderíamos chamar de indivíduo arrogante e exigente. Pelo contrário, a vida e uma educação puritana, espartana, franciscana, atleticana, haviam lhe ensinado a ser comedido, a se contentar com pequenas alegrias e vitórias, mesmo que não levassem à conquista de títulos de expressão.
         Por tudo isso, eu – diretor geral da Agência de Investigação R&R – diante do surto de agressividade do qual foi acometido, fiz questão de me envolver pessoalmente, pedindo-lhe uma transcrição dos fatos, cuja parte relevante está exposta resumidamente a seguir, em conjunto com as hipóteses explicativas:

“... Uma coisa que fiquei sabendo depois e que não sabia antes: a Toscana é uma província da Itália, o que corresponde a um estado brasileiro.
            Quando você entra no espaço aéreo italiano, recebe uma amostra do que lhe espera naquele país: você é dedetizado, como se fosse um cachorro vira-lata, infestado de pulgas e carrapatos. Você, que recebeu uma orientação médica de não levar desaforo para casa, anota em sua agenda aquele fato, para o devido troco, acrescido de juros e correção monetária.
            A Toscana fica na região central da Itália e possui várias cidades famosas: Veneza, com sua Piazza San Marco e ameaçada de submergir qual Atlântida, Verona, com a Casa Giulietta, uma bobagem, mas onde você tem a possibilidade de posar para uma foto apertando seu busto, Pádua, uma referência para as mocinhas casamenteiras, que amarram a imagem de Santo Antônio pelos pés e o afogam numa jarra d’água, Pisa (e não pizza) com sua Torre pendente naquele eterno cai-não-cai.
            A capital da Toscana se chama Florença, Firenze em italiano. Lá tem um time de futebol chamado Fiorentina e onde jogou, se não me falha a memória, o brasileiro Sócrates, aquele mesmo sobre quem, ainda atleta do Corinthians, o presidente Vicente Matheus dizia: “O Sócrates é inegociável, invendável e imprestável”. Sócrates morreu em decorrência de uma doença séria, nem sempre levada em conta, chamada “timidez”. O alcoolismo foi mais uma decorrência.
            Em Florença, você tem a possibilidade de conviver com a grosseria e a má-educação do povo italiano, ora numa lanchonete, ora numa casa comercial, ora num restaurante. Se possuir fluência em italiano, é hora de dar o troco, dizer poucas e boas para aquela gente. Você se pergunta qual a serventia de uma fabulosa herança cultural para quem não dispõe de um mínimo de educação. Se você é monoglota, pode retornar ao Brasil (se for o caso) e arquitetar uma vingança onde irá atirar numa coisa e matar outra: como Firenze é a capital da Toscana, você abdica de comprar um vinagre e um pão de forma com os nomes da cidade e da província...”
           
           Depois de ler o relatório, não resisti à curiosidade e perguntei:
            - Por que tanto veneno?  E Roma, não vale nada?
            - Está bem, Roma acalma os nervos, é um colírio para as vistas cansadas... e esvazia os bolsos. Trata-se de uma cidade com uma arquitetura indescritível; ali, a gente respira o ar da história! (Também achou esta tirada fenomenal? Estou precisando de um termômetro para verificar uma suspeita de insolação). Sim, tem o Coliseu, a Fontana di Trevi, o Vaticano é lindo, a Basílica de São Pedro nem se fala, mas é preciso cuidado com os padres e suas proximidades. É lá que você pode ser esfolado vivo!
        Deixando de lado as divagações e retomando o fio da meada, senti meu instinto – apurado ao longo de anos de profissão – dizer que eu deveria analisar os acontecimentos ocorridos durante o voo. Por isso, perguntei a Inocêncio:
            - O que você fez de especial durante o voo?
            - Bem - respondeu ele – com o fone de ouvido ligado, inicialmente, ouvi algumas músicas.
            - Você destacaria alguma?
            - Sim, lembro-me bem de “I giorno dell’ira”, com Riz Ortoloni e Orquestra, tema do filme homônimo, estrelado por Giuliano Gemma e Lee Van Cleef.
            - Hummm... – resmunguei. – Mais alguma coisa?
            - Logo depois, fui assistir a um filme, “Um Dia de Fúria”, estrelado por Michael Douglas.
            - Hummm... – resmunguei novamente.
            - Assim que terminou o filme, retomei a leitura de “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco.
            - Trata-se daquele romance que descreve uma série de mortes misteriosas, decorrentes de envenenamentos, não é isso? – perguntei, querendo mostrar erudição e não ser passado para trás.
            Nem mesmo esperei a resposta para emendar, em seguida:
       - Meu caro Inocêncio. Você teve o que especialistas chamam de SCA (Síndrome de Compressão Auditiva), ocasionada pela altitude do vôo e associada à audição de “I giorno dell’ira”. Teve também o que chamam de TPV (Trauma de Pânico Visual), com o filme “Um Dia de Fúria”, a FIG (sigla inglesa para designar a ingestão de gases durante o processo de dedetização), além da CAC (Congestão por Alimento Contaminado). Se o sentido do tato tivesse sido afetado, as consequências poderiam ser fatais. A propósito, como se sentiu após o serviço de lanche?
          - Puxa, eu me senti muito mal. Eu não suportava de tanto gás (estou me referindo, agora, ao de flatulência); se não estivesse preso em um avião, sairia voando pelo espaço, tal qual um balão ou foguete. Mas me explica uma coisa, senhor investigador: por que esse surto de agressividade foi acontecer mais em Florença?
         - Ora – retruquei, com um sorriso irônico – como você sabe, Florença é a terra natal de Dante Alighieri e aquele dia, quem sabe, era dedicado à primeira parte de sua Divina Comédia, o Inferno! Portanto, estando tudo explicado, seria bom que você acalmasse seu instinto assassino, passando uma borracha em todo seu desejo de vingança.
  Etelvaldo Vieira de Melo


SONHO
Sonhos
Imagem: www.imotion.com.br



Sonhei que já era dia
e que à manhã raiada
não resistiria.
E à casa onde vivo
não retornaria.

Sonhei
que a vida era um filme
e a cena do crime
me revelaria.

Sonhei que às onze em ponto
tomaria a droga
e adormeceria.
Em me adormecendo
algum pesadelo
me despertaria.

Sonhei
que em despertando
o sonho de novo
começaria.
Era mais um dia
em que eu sonharia.

LIMITES DA CONVENIÊNCIA


Este é um texto que fala das relações afetivas conturbadas, doloridas, mal resolvidas. Existem pessoas que passam por isso; é pra elas que escrevi tais reflexões, seguindo modelo daqueles parques de diversão que aportavam lá em minha terra natal. Através de um serviço de alto-falante, o locutor dizia: “Esta música é um oferecimento de alguém para outro alguém, que sabe quem, como prova de muito amor e carinho”.

Existe uma música antiga, de Dorival Caymmi, que diz assim:
            
“Eu vou pra Maracangalha, eu vou! / Eu vou de ‘liforme’ branco, eu vou! / Eu vou de chapéu de palha, eu vou! / Eu vou convidar Anália, eu vou! / Se Anália não quiser ir, eu vou só... / Vou sem Anália, mas eu vou!”

Sob a ótica contemporânea, ignorantes de geografias, histórias, contextos e assustados diante do termo “maracangalha”, iríamos dizer:
           
- Não vai, não, Anália!

Tal música serve para ilustrar uma determinada situação que confronta atitudes de convite e resposta. Possivelmente, a resposta de Anália será “não”, o que irá lhe representar um bem. Imagina acompanhar um sujeito de ‘liforme’ branco, chapéu de palha e indo para Maracangalha... Cruz credo! Estou dizendo tudo isso sob a ótica contemporânea, volto a dizer, pois o contexto da música foi bem outro.

Anália usa de seu poder assertivo, quando diz “não” ao convite que lhe foi feito, muito diferente da Amélia, de Ataulfo Alves e Mário Lago, que achava bonito não ter o que comer e, vendo o maridão contrariado, dizia: “Meu bem, o que se há de fazer?

O personagem de Maracangalha não se dá por vencido: se a mulher não quiser ir, ele vai só.

Veja como é bom quando as relações humanas são assentadas sobre esses pilares de transparência e honestidade! Lembro-me de uma passagem bíblica a dizer: que o seu sim seja sim, que o seu não seja não.

Hoje, vivemos relações baseadas na falsidade, na insegurança ou medo. Nossas carências levam-nos a negar o nosso “eu” na busca da aceitação do outro. Seria ridículo, não fosse dramático, como certas pessoas mendigam atenção e amizade daqueles que não lhes têm o mínimo de consideração e respeito. Por suas carências, nem chegam ao que é contado por Vinícius de Moraes de uma moça que, depois de ser trocada tantas vezes por uma regra três, “perdeu a esperança, porque o perdão também cansa de perdoar”.  

Outro dia, fui procurado por um rapaz, preocupado com o possível término de uma relação afetiva com o companheiro com quem morava. A conversa era mais de desabafo do que de busca de outro parecer. No final, ele disse:
            
- Se não for possível ficarmos juntos, tudo bem, que eu vou embora sem problemas. O que não quero é ficar fazendo papel ridículo, apegado a alguém que já não gosta de mim.

Não é que eu considere, como pensava Sartre, que “o inferno é o outro”, mas existem pessoas que conseguem transformar nossas vidas num inferno. Uma das maneiras é quando brincam com nossos sentimentos, usando artifícios de sedução e, depois, deixando-nos totalmente dependentes e carentes. O pior de tudo acontece quando o dependente não consegue quebrar essas amarras e passa a vida toda amargurado, desacreditando na possibilidade de existirem pessoas sérias e honestas.

O que posso dizer para aqueles que sofreram nas mãos de inescrupulosos? Como diz aquela música, “levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima”, ou seja: acredite em você mesmo, reconheça seu valor e saiba que existe outra pessoa com coração de ouro e que pode se tornar sua princesa ou seu príncipe encantado.

Quanto ao brincalhão, se pudesse me ouvir, eu lhe diria que não se deve “brincar” com os sentimentos alheios, que seus atos inconsequentes podem machucar, causando feridas talvez incuráveis, que está sendo desonesto e imaturo. Caso se atreva, que olhe para um espelho e veja o quanto é feio interiormente. Se for possível, que se pergunte: será que sou capaz de amar, eu que não sei dispor de mim mesmo? Não sabendo amar, será que poderei ser amado verdadeiramente? 
            Etelvaldo Vieira de Melo


POR QUE ESCREVER?

Escritas
Imagem: comunidade.sol.pt


Escreva, porque o estupor da realidade é apenas um tecido de sonhos, e é preciso despertar.
Escreva, porque tudo vale a pena, até mesmo decifrar o holocausto ou a frágil figura de um ser humano.
Escreva, porque as palavras enxugam como esponjas as raias de se saber só e inútil no mundo.
Escreva, depois de ler as manchetes de suor e sangue, manipuladas para o incauto telespectador.
Escreva, porque mesmo sabendo da impossibilidade de tradução das palavras, um horizonte fatídico ou belo nasce nos olhos pasmos do leitor.

Escreva, porque apesar da estúpida audácia de pôr o mundo em desordem alfabética, outras vistas se entreabrem sobre a linguagem e compreendem os passos da escrita, lentos, isentos de culpa.

RECORTES DE LEMBRANÇAS


            Segundo Domingo de Agosto: Dia dos Pais, de Natinho e de tantos outros.

Ao longo de nossas vidas, muitos fatos, porque considerados insignificantes, passam despercebidos, até que o tempo os resgate, com tempero de sabor e saber, revelando-nos seus encantos, suas belezas.

Como cada ser humano escreve a própria história, ela se torna importante justamente por isso: é ali que o indivíduo se torna ator principal - e não mero coadjuvante – e é ali onde ele aparece em primeiro lugar nos créditos da trama de sua existência.

Não sei se você já parou para pensar nisso, como sua trajetória de vida tem uma beleza única, por mais simples e insignificante que possa parecer aos outros. Porque ela é a sua história e foi você quem a construiu.

De repente, começo a pensar na história de minha própria vida; em especial, com lembranças de meus pais. E começo a descobrir coisas extraordinárias, que ficaram encobertas por tanto tempo. Resgatá-las não significa somente um prazer para mim: é um convite que lhe faço para que você também refaça seu caminhar pela vida, recuperando valores que, muitas vezes, se perderam com o tempo. Quem sabe, isso não venha a dar um colorido novo para sua existência?

Meus pais eram pobres e viveram em uma cidade onde a separação de classes era muito acentuada, ao ponto de determinar normas para o linguajar das pessoas. Tanto é assim que eu só tinha o direito de lhes chamar de “pai” e “mãe”. Tinha vontade de dizer “papai” e “mamãe”, mas esse era um privilégio de crianças ricas.

Quando se casaram, estavam somando estranhas coincidências, prenúncio de uma relação feliz por longos e longos anos. Ela tinha sobrenome Ferreira; ele, Vieira – os dois tipicamente portugueses, com certeza. Minha mãe se chamava Leonina e meu pai, Cincinato – dois nomes latinos. Seus nomes completos de casados perfazem, cada um, 21 letras.

Meu pai era padeiro de profissão, mas a lembrança que tenho dele era como dono de bar. Ainda sinto aquele cheirinho gostoso de cachaça em tonéis guardados em um quartinho, quando ele ia até lá encher garrafas; tal aroma se acentuava ainda mais quando minha mãe cuidava de fazer licores, doces de leite e almôndegas, tudo para ser vendido no bar. Eu, como filho caçula, rapa do tacho – expressão que usavam - sempre acompanhava meu pai, depois do almoço, na volta ao trabalho. Lembro-me de que ele tinha um corrente e que tinha o costume de girá-la no dedo. Eu também quis ter a minha. Assim, subíamos juntos a Rua do Beco, cada um girando a sua corrente. Não sei bem se eu o ajudava de alguma maneira lá no bar. Sei que, então, os maços de cigarro vinham em caixas grandes e eu tinha o costume de entrar nessas caixas e ficar cantando. Quero dizer que fui um precursor da música ao vivo, só que me esqueci de registrar patente. Também não me lembro se meu canto atraía ou afugentava os fregueses.

Nas comemorações de final de ano, o dia 25 de dezembro amanhecia cedo para os filhinhos de papai, que iam exibir seus presentes para os amiguinhos pobres: bicicletas, velocípedes, carrinhos, bonecas... Lá em casa, o presente vinha embalado em papel: um punhado de balas, mais algumas castanhas e nozes, mostras de que se tratava de um momento especial. Não me lembro de ter ganho outro tipo de lembrança, fato que ocasionou um trauma em minha infância, só reparado há pouco tempo, quando minha esposa me presenteou com um jogo de videogame, no dia de meu aniversário. Mas, pensando bem, até que recebi certa vez um presente de uma amiga da família. Tratava-se de uma baratinha de plástico com uma placa de latão na parte inferior. Quando você apertava a bundinha da barata, a placa fazia com que ela saltasse. Um de meus irmãos foi logo experimentar o brinquedo junto ao fogão a lenha. Por questão de segundos, minha barata se desmanchou toda, restando apenas os ossos de latão.

Meu pai foi, de repente, tomado por uma doença, boba para os padrões de hoje, e que lhe ocasiona a morte aos 52 anos de idade; aquele projeto de uma vida feliz por longos anos naufraga na metade do caminho. Não é que ele deixou de honrar seu homônimo latino, que foi general e cônsul, que viveu por mais de 80 anos. Ele, há muito, deixara de ser Cincinato para ser conhecido como Natinho. Meus irmãos e eu éramos os filhos do Natinho.   E minha mãe se vê, então, só. E ela, franzina, pequenininha, tem que fazer jus ao nome, tem que se tornar uma leoa, Leonina, para cuidar dos sete filhos com suas únicas mãos. Fazia sentido: no reino dos leões, é a fêmea que cuida da família, que busca alimento para os filhos; por isso, tem que ser corajosa e decidida.

As lembranças de nossa relação são intensas. Foi para ela que fiz a pergunta mais intrigante e que me incomoda até hoje: “Mãe, qual o sentido disso tudo? Por que vivemos? A senhora, que tem tanta experiência, não poderia me adiantar alguma explicação, pequena que seja?” Ela sorria timidamente, como se eu estivesse falando uma tremenda bobagem. Mas não se descuidou da resposta, que me foi repassada ao longo da vida, através de seu jeito simples e afetuoso: de maneira firme, ela me ensinou valores que, hoje, parecem ultrapassados, obsoletos. Eles foram a argamassa que moldaram a minha personalidade. Seu exemplo de vida foi o de uma pessoa simples, honesta, acolhedora, cuidadosa, afetuosa. Assim, eu me tornei desse jeito, uma pessoa com muitas falhas, mas também orgulhosa das qualidades que mãe me repassou.

O milagre da multiplicação dos pães e peixes acontece com mais frequência do que podemos imaginar. Eu me pergunto como conseguiu criar todos os filhos, recebendo uma mísera pensão. Depois, teve que se desdobrar ainda mais, quando uma de suas filhas ficou viúva precocemente e foi morar em sua casa, acompanhada do filho menor. Lá também morava um de seus irmãos, solteiro convicto.

Lalau e Lilia, tio e sobrinha, tinham apelidos parecidos, mas se tratavam como cão e gata na disputa da atenção de minha mãe, que ainda não podia descuidar-se dos ciúmes dos outros seis filhos.
Assim, com luta e sacrifício, íamos tocando a vida. Nada era fácil, mas Leonina conseguia superar as adversidades com paciência e uma religiosidade muito enraizada, certamente as principais fontes de sua força.

Também aconteciam momentos de descontração e alegria. Lembro-me de quando nos preparávamos para matar aquele porco, criado em um chiqueiro no fundo do quintal. Evidentemente, grande parte de sua carne já estava comprometida como retribuição aos inúmeros vizinhos que doavam restos de comida. Não importava, pois havia entusiasmo com o pouco que haveria de sobrar, sobretudo, do torresmo.

Durante o dia, havíamos cortado folhas de bananeira, deixadas na garagem de casa, e que seriam usadas no ato de sacrificar o animal. À noite, de madrugada, acordei com barulhos estranhos vindo da garagem. Falei para mãe, que tinha quarto ao lado do meu:

- Mãe, acho que tem uns cavalos lá na garagem.

Ela respondeu, sorrindo:

- Não é nada não, meu filho. Isso aí é o Marcelo rangendo os dentes.

Marcelo era o filho de Lilia.

No outro dia, cedo, fomos até a garagem. E lá estavam quatro cavalos, mascando, tranquilos, as folhas de bananeira. Todo mundo achou graça no acontecido, menos a Lilia que, por sua história de vida, aparentava ser mal-humorada e não admitia fazerem troça de seu filhinho do coração.
            
            Bênção, pai; bênção, mãe!
Etelvaldo Vieira de Melo

   

FLOEMA


Eu quis fazer
                                   
um poema tão bom
que fizesse tremer
os corações mais duros
e as cabeças mais frouxas.

Meu poema
iria falar
de flor
dessas belezas
de cor
e auroras boreais.

O tema do floema
seria um abraço
na humanidade.

Não iria caber
na minha fala
gente calada
nem ditadura.

A alegria do poema
não viria da Globo
nem iria pra mídia.
Imagem: www.minirecados.com
Não seria político
nem bem engajado.

Iria entregá-lo
em sua mão,
leitor, como eu,
sem linha reta
nem muita pessoa.

Meio quixotesco
meio Sancho Pança,
sem lambança.
Pra você leitor,
amigo que escreve
junto comigo.

Mas o poema
que eu pretendia
já estava escrevidinho
em Carlos  Drummond de Andrade.

Então, só restou-me
lhe dizer bom dia!
Obrigada pela ideia
que você me passou.
Escrevamos juntos
um final sem rima
mas cheio de poesia
e boa companhia. 

ENCICLOPÉDIA DA VIDA


                                                 Em homenagem às enciclopédias Britânica, Barsa e Wikipédia

Se eu não fosse uma pessoa tão tímida, tão acanhada, retraída, tão introvertida, tão medrosa de me aproximar dos outros, tão insegura de expor publicamente meus pensamentos, tão meticulosa no trato das palavras, se eu não fosse nada disso, eu até ousaria dizer algo que anda me incomodando e que, acredito, pode interessar a mais alguém.

Observo que, na vida, as pessoas passam por experiências semelhantes, poucos são aquelas que vivenciam o inusitado, o extraordinário. Apelando para razões matemáticas, vamos dizer que 50 seriam aquelas situações básicas pelas quais todos passam (e olha que posso estar sendo generoso com esse número!). Sendo assim, por que não elaborar um catálogo com uma súmula de especialistas sobre cada tema? Considerando a existência de diversidade cultural, o arranjo poderia ser feito por países. Depois, quem sabe, poderia ser constituído um guia universal.

Escolhido um tema, deveríamos, primeiro, delimitá-lo através de um termo que seja consensual, ou seja, que todos o entendam da mesma maneira. Muitos desacordos entre as pessoas decorrem precisamente disso: empregam o mesmo termo para designar conceitos diferentes ou usam de termos diferentes mas que expressam um mesmo conceito. A título de exemplo, analisemos a seguinte declaração de uma atriz de TV, aos 70 anos: “Tenho vivacidade sexual fora do normal”. Esta forma rebuscada de expressão pode ser traduzida por: “Eu sou uma ninfomaníaca”, ou: “Eu sou uma tarada”. Se as três formas traduzem o mesmo conceito, por que a dita atriz haveria de ficar indignada, caso eu chegasse até ela e dissesse: “Você é uma tarada”? É bem provável que ela me processe e exija uma polpuda indenização por calúnia e danos morais, recurso, aliás, frequentemente empregado por outra personagem da TV que, pelo histórico de vida, faz lembrar o título daquele filme Klute - o Passado Condena.

Delimitado o tema através de um termo consensual, deveríamos, em seguida, enumerar aquelas pessoas que o trataram com mais propriedade. Depois, suas ideias seriam confrontadas, as arestas aparadas, sendo mantido o denominador comum. Em caso de divergência total, iríamos buscar, numa acareação, aquilo que seria o substrato, a essência possível.

A título de exemplo, analisemos o tema “Amor”. O que salta aos olhos é que se desperdiça tempo demais com ele. As pessoas tentam entendê-lo, mas se perdem diante de tantas opiniões dispersivas e contraditórias a respeito.

O que fazer?  Vamos agrupar duas ou três opiniões sensatas sobre o assunto e tentar estabelecer um denominador comum.

Vinícius de Moraes e Artur da Távola são ambos cariocas e mais ou menos contemporâneos. O primeiro nasceu em 19 de outubro de 1913, falecendo em 9 de julho de 1980; Artur nasceu em 3 de janeiro de 1936 e faleceu em 9 de maio de 2008.

No Soneto da Fidelidade, Vinícius declama:
“E tudo, ao meu amor serei atento / Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto / Que mesmo em face do maior encanto / Dele se encante mais meus pensamentos / Quero vivê-lo em cada vão momento / E em seu louvor hei de espalhar meu canto / E rir meu riso e derramar meu pranto / Ao seu pesar ou seu contentamento / E assim quando mais tarde me procure / Quem sabe a morte, angústia de quem vive / Quem sabe a solidão, fim de quem ama / Eu possa me dizer do amor (que tive) / Que não seja imortal, posto que é chama / Mas que seja infinito enquanto dure.”  

Está aí a opinião de um expert no assunto, ele que se casou por nove vezes. Em resumo, ele diz que o amor é uma chama passageira, infinita enquanto dura.

Traduzindo, para uma linguagem matemática, temos: A = P (1) (A de Amor e P de Paixão).

Para Artur da Távola, O amor é um começo pelo fim, no qual o meio vem sempre depois com as suas insuperáveis leis. Por isso, corre mais rápido do que as veredas que estão no seu caminho. A vivência de amor é difícil e dolorosa porque significa voltar, depois de ter chegado ao fim, ao auge, ao máximo... É quando o amor deixa de ser muito bom, para ser mútuo bom. E o amor só é mútuo bom quando, depois de ter chegado ao máximo (no sentido de ápice, extremo), volta-se sobre si mesmo num refluxo enriquecedor.”

Segundo esse amorólogo, o amor começa (ou não) ao fim da paixão. Para ele, A ≠ P > A = -P (2) (-P como não-Paixão).

Juntando as duas equações (1) + (2) = P + (-P) = 0.

Conclusões possíveis do confronto entre as ideias de Vinícius de Moraes e Artur da Távola sobre o Amor:
1ª) Enquanto estavam vivos, deveriam passar por uma acareação. Agora, “a Inês é morta”;
2ª) O amor não existe;
3ª) O amor existe, mas não pode ser reduzido a fórmula matemática.

De forma objetiva, concisa e precisa, prevalece a segunda alternativa: O amor não existe (isto caso opte pela declaração simplificada, com dedução de 50%, entre as opiniões de Vinícius e de Artur; você também pode optar pela 3ª alternativa, caso declare em formulário completo).

PS (Post-scriptum, e não PlayStation): Andei fazendo certa confusão entre o tema e minhas obrigações para com o fisco. A propósito, o símbolo da Receita Federal deveria ser a Onça, e não o Leão. Além de homenagear um legítimo representante da fauna brasileira, esse é um animal de muita afinidade com determinada categoria de cidadãos.
Etelvaldo Vieira de Melo