Segundo Domingo de Agosto:
Dia dos Pais, de Natinho e de tantos outros.
Ao longo de nossas vidas,
muitos fatos, porque considerados insignificantes, passam despercebidos, até
que o tempo os resgate, com tempero de sabor e saber, revelando-nos seus
encantos, suas belezas.
Como cada ser humano escreve
a própria história, ela se torna importante justamente por isso: é ali que o
indivíduo se torna ator principal - e não mero coadjuvante – e é ali onde ele aparece
em primeiro lugar nos créditos da trama de sua existência.
Não sei se você já parou
para pensar nisso, como sua trajetória de vida tem uma beleza única, por mais
simples e insignificante que possa parecer aos outros. Porque ela é a sua história e foi você quem a construiu.
De repente, começo a pensar
na história de minha própria vida; em especial, com lembranças de meus pais. E
começo a descobrir coisas extraordinárias, que ficaram encobertas por tanto
tempo. Resgatá-las não significa somente um prazer para mim: é um convite que
lhe faço para que você também refaça seu caminhar pela vida, recuperando
valores que, muitas vezes, se perderam com o tempo. Quem sabe, isso não venha a
dar um colorido novo para sua existência?
Meus pais eram pobres e
viveram em uma cidade onde a separação de classes era muito acentuada, ao ponto
de determinar normas para o linguajar das pessoas. Tanto é assim que eu só
tinha o direito de lhes chamar de “pai” e “mãe”. Tinha vontade de dizer “papai”
e “mamãe”, mas esse era um privilégio de crianças ricas.
Quando se casaram, estavam
somando estranhas coincidências, prenúncio de uma relação feliz por longos e
longos anos. Ela tinha sobrenome Ferreira; ele, Vieira – os dois tipicamente
portugueses, com certeza. Minha mãe se chamava Leonina e meu pai, Cincinato –
dois nomes latinos. Seus nomes completos de casados perfazem, cada um, 21
letras.
Meu pai era padeiro de
profissão, mas a lembrança que tenho dele era como dono de bar. Ainda sinto
aquele cheirinho gostoso de cachaça em tonéis guardados em um quartinho, quando
ele ia até lá encher garrafas; tal aroma se acentuava ainda mais quando minha
mãe cuidava de fazer licores, doces de leite e almôndegas, tudo para ser
vendido no bar. Eu, como filho caçula, rapa do tacho – expressão que usavam -
sempre acompanhava meu pai, depois do almoço, na volta ao trabalho. Lembro-me de
que ele tinha um corrente e que tinha o costume de girá-la no dedo. Eu também
quis ter a minha. Assim, subíamos juntos a Rua do Beco, cada um girando a sua
corrente. Não sei bem se eu o ajudava de alguma maneira lá no bar. Sei que,
então, os maços de cigarro vinham em caixas grandes e eu tinha o costume de
entrar nessas caixas e ficar cantando. Quero dizer que fui um precursor da
música ao vivo, só que me esqueci de registrar patente. Também não me lembro se
meu canto atraía ou afugentava os fregueses.
Nas comemorações de final de
ano, o dia 25 de dezembro amanhecia cedo para os filhinhos de papai, que iam
exibir seus presentes para os amiguinhos pobres: bicicletas, velocípedes,
carrinhos, bonecas... Lá em casa, o presente vinha embalado em papel: um
punhado de balas, mais algumas castanhas e nozes, mostras de que se tratava de
um momento especial. Não me lembro de ter ganho outro tipo de lembrança, fato
que ocasionou um trauma em minha infância, só reparado há pouco tempo, quando
minha esposa me presenteou com um jogo de videogame, no dia de meu aniversário.
Mas, pensando bem, até que recebi certa vez um presente de uma amiga da
família. Tratava-se de uma baratinha de plástico com uma placa de latão na
parte inferior. Quando você apertava a bundinha da barata, a placa fazia com
que ela saltasse. Um de meus irmãos foi logo experimentar o brinquedo junto ao
fogão a lenha. Por questão de segundos, minha barata se desmanchou toda,
restando apenas os ossos de latão.
Meu pai foi, de repente,
tomado por uma doença, boba para os padrões de hoje, e que lhe ocasiona a morte
aos 52 anos de idade; aquele projeto de uma vida feliz por longos anos naufraga
na metade do caminho. Não é que ele deixou de honrar seu homônimo latino, que
foi general e cônsul, que viveu por mais de 80 anos. Ele, há muito, deixara de
ser Cincinato para ser conhecido como Natinho. Meus irmãos e eu éramos os
filhos do Natinho. E minha mãe se vê, então, só. E ela, franzina,
pequenininha, tem que fazer jus ao nome, tem que se tornar uma leoa, Leonina,
para cuidar dos sete filhos com suas únicas mãos. Fazia sentido: no reino dos
leões, é a fêmea que cuida da família, que busca alimento para os filhos; por
isso, tem que ser corajosa e decidida.
As lembranças de nossa
relação são intensas. Foi para ela que fiz a pergunta mais intrigante e que me
incomoda até hoje: “Mãe, qual o sentido
disso tudo? Por que vivemos? A senhora, que tem tanta experiência, não poderia
me adiantar alguma explicação, pequena que seja?” Ela sorria timidamente,
como se eu estivesse falando uma tremenda bobagem. Mas não se descuidou da
resposta, que me foi repassada ao longo da vida, através de seu jeito simples e
afetuoso: de maneira firme, ela me ensinou valores que, hoje, parecem
ultrapassados, obsoletos. Eles foram a argamassa que moldaram a minha
personalidade. Seu exemplo de vida foi o de uma pessoa simples, honesta,
acolhedora, cuidadosa, afetuosa. Assim, eu me tornei desse jeito, uma pessoa
com muitas falhas, mas também orgulhosa das qualidades que mãe me repassou.
O milagre da multiplicação
dos pães e peixes acontece com mais frequência do que podemos imaginar. Eu me
pergunto como conseguiu criar todos os filhos, recebendo uma mísera pensão.
Depois, teve que se desdobrar ainda mais, quando uma de suas filhas ficou viúva
precocemente e foi morar em sua casa, acompanhada do filho menor. Lá também
morava um de seus irmãos, solteiro convicto.
Lalau e Lilia, tio e
sobrinha, tinham apelidos parecidos, mas se tratavam como cão e gata na disputa
da atenção de minha mãe, que ainda não podia descuidar-se dos ciúmes dos outros
seis filhos.
Assim, com luta e
sacrifício, íamos tocando a vida. Nada era fácil, mas Leonina conseguia superar
as adversidades com paciência e uma religiosidade muito enraizada, certamente
as principais fontes de sua força.
Também aconteciam momentos
de descontração e alegria. Lembro-me de quando nos preparávamos para matar
aquele porco, criado em um chiqueiro no fundo do quintal. Evidentemente, grande
parte de sua carne já estava comprometida como retribuição aos inúmeros
vizinhos que doavam restos de comida. Não importava, pois havia entusiasmo com
o pouco que haveria de sobrar, sobretudo, do torresmo.
Durante o dia, havíamos
cortado folhas de bananeira, deixadas na garagem de casa, e que seriam usadas
no ato de sacrificar o animal. À noite, de madrugada, acordei com barulhos
estranhos vindo da garagem. Falei para mãe, que tinha quarto ao lado do meu:
-
Mãe, acho que tem uns cavalos lá na garagem.
Ela
respondeu, sorrindo:
-
Não é nada não, meu filho. Isso aí é o Marcelo rangendo os dentes.
Marcelo
era o filho de Lilia.
No outro dia, cedo, fomos
até a garagem. E lá estavam quatro cavalos, mascando, tranquilos, as folhas de
bananeira. Todo mundo achou graça no acontecido, menos a Lilia que, por sua história
de vida, aparentava ser mal-humorada e não admitia fazerem troça de seu
filhinho do coração.
Bênção, pai; bênção, mãe!
Etelvaldo
Vieira de Melo