O CÃO QUE NÃO PODIA VER O PÁSSARO QUE NÃO PODIA VOAR


O
 meu nome é Thor. Não sou nenhum deus da mitologia nórdica, nem personagem de quadrinhos; sou um cachorro. Se fosse para olhar sob a perspectiva humana, a história de minha família é pra lá de complicada.
           
Pra início de conversa, meu pai é também meu avô, já que, ao mesmo tempo em que engravidava minha mãe, também colocou minha avó de barriga prenhe. Conclusão: tive quatro irmãos por parte de mãe e quatro por parte de avó e que, por isso, eram também meus tios.
           
Já minha avó era também minha madrasta, por parte de pai. A única que ficava sem tirar nem por era minha mãe, que era minha mãe – mesmo que a olhasse por todos os lados.
           
Com tantos irmãos e tios, minhas primeiras experiências de vida foram o que os humanos chamam de “balaio de gatos”, ou seja, vivi momentos de muita confusão. Tive que disputar, a tapas com os parentes, ora as tetas de mamãe, ora as de vovó. Como eu era muito esperto, sempre acabava me dando bem. E não tinha esse negócio de respeito aos mais velhos, já que meus tios eram também meus irmãos e, a bem da verdade, um pouco mais novos do que eu.
           
Tanto mamãe como vovó sempre se mostravam dispostas a doar seus leites, mesmo que fosse para os netos (caso de vovó) ou para os irmãos (caso de mamãe). Evidentemente, os mais espertos conseguiam tirar melhor proveito. Eu jogava nesse time e, por isso, logo fui ganhando corpo, ao tempo que deixava meus irmãos e irmãos-tios para trás.
           
Enquanto estávamos naquela luta renhida pela sobrevivência (e que me fazia lembrar aqueles versos de Gonçalves Dias: "Não chores, meu filho; / Não chores, que a vida / É luta renhida: / Viver é lutar. / A vida é combate, / Que os fracos abate, / Que os fortes, os bravos /Só pode exaltar!"), meu pai-avô ficava de longe, observando, mas não querendo se envolver com nada. Era isso que me incomodava em seu olhar, seu jeito de ser. Ele é de uma raça chamada Shar Pei e tem a pele toda enrugada. Seu rosto também é tomado por rugas, o que lhe confere um ar de tristeza e enfado. A qualquer hora do dia em que eu olhava para ele, lá estava ostentando aquele aspecto de cansaço, ansiando por sombra e água fresca. Essa maneira de olhar provocou em seu dono, eu ouvi, o seguinte comentário:

           
- Quando olho para Zau, sou tomado por profundas questões metafísicas: Afinal, quem sou eu? De onde vim? Para onde vou? Qual o sentido de tudo isso? Será que vale a pena viver?
           

Se fosse humano, os médicos haveriam de prescrever-lhe uma dose diária de antidepressivo.
           

Sei que carrego muito dele como herança genética. Sinto que, fisicamente, somos até parecidos um pouco (tenho até mesmo a língua azul-escura), embora, enquanto filhote, eu seja muito mais charmoso. Quanto ao aspecto psicológico, fico torcendo para que a herança genética seja de minha mãe, uma cadela vira-lata, mas que tem muito bom humor e alegria de viver.


Enquanto conto esta pequena história de vida pra vocês, muita coisa anda acontecendo, sendo a principal ter sido adotado por um casal, o senhor Florêncio e dona Rosália, e, assim, acabei me afastando dos meus parentes.


No início, foi difícil suportar a separação. Por duas noites eu chorei, achando que havia sido abandonado.


Ultimamente, sinto-me bem adaptado à nova situação de vida. Eu me dou bem com todos da casa, em especial com a filha do casal, a Margarida. Todos brincam comigo. Sinto um prazer especial em roer aqueles ossos vendidos em pets-shop. Também gosto de mordiscar uma bolinha e correr atrás de uma garrafa de refrigerante. Um cobertor - que eles chamam de “são vicente”, daqueles doados para asilos - era usado para forrar minha cama, mas sofreu tanto comigo, que acabou todo estraçalhado. Tornou-se, também, um de meus brinquedos favoritos. Dias desses, recuperei outro brinquedo favorito e que andava sumido: uma tira de sandália havaiana, cortada por meus afiados dentes.


Uma coisa de que eu gosto, mas que está errado, é mordiscar as plantas que estão no quintal. Vez por outra, acabo me esquecendo disso e arrebento muitas plantas, o que causa um desgosto enorme em dona Rosália. Sei que, quando me tornar mais velho, vou acabar corrigindo esse meu defeito de caráter.


Outra coisa que tenho a dizer tem a ver com aquele passarinho que não podia voar, o Pti-Pzi-Pti. Eu sabia muito bem de sua presença no quintal, só fingia não me dar conta. Ouvi as pessoas da casa comentando o fato de ter ele, finalmente, conseguido voar. Torço muito para que ele seja feliz; gostaria que aquele seu sonho de que éramos amigos tivesse sido realidade. Achei bonita a lição que ele e seus pais deixaram.


Eu me sinto assim também, feliz por ter sido adotado por esta família que me quer tanto bem. Quando algum deles, depois de brincar comigo, tenta entrar para a cozinha da casa, logo eu abraço uma de suas pernas, pedindo para que não vá embora.


Esta é uma das maneiras que encontro para demonstrar carinho. Se tem algo que posso ensinar para os humanos, esse algo se chama reconhecimento. Carinho, respeito e reconhecimento são valores que andam fazendo falta aos humanos. Pelo menos, é isso que tenho ouvido as pessoas comentarem aqui em casa.


Quando eu crescer e tiver mais experiência, poderei, se vocês quiserem, fazer outras considerações sobre o que a vida me ensina. Por enquanto, é só o que posso dizer. Adeus. Assinado: Thor.








1 comentários:

Anônimo disse...

É isso aí, Thor. Foi muito bom lembrar a nós, humanos, de valores esquecidos frente aos apelos do mundo muito bizarro em que vivemos. Cresça, assim, com bastante juízo, e não destrua as plantas do seu belo quintal, viu?

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