PRA LÁ DO SOL

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Ele era uma vez o violinista
que entregava cartas
de amor troppo dolce.

À noite o instrumento
tocava serenata
nas cordas afinadas
a breu.

Paganini o animava
ensinando-lhe as fusas
sempre confusas
das tumbas do cemitério.

Os cabelos revoltos
sabiam de notas
e postais a entregar.
Não se dobrava
ao comando do som,
mas o dominavam
as pontas dos dedos
e o compasso do pé.

Amava a música e os telegramas
enviados de longe
por Beethoven ou Bach.

O correio chegava
e ele colhia
notícias dos astros.
Escrevia bilhetes
miríades milhares
e concertava na pauta
longas partituras
e breves acordes.

Os olhos fechados
o arco flechado
tangiam mistérios.
“Este violino – dizia o mago –
é o meu mister”.

As cartas voavam
e paravam o sol
maior do que as letras
escondidas nos selos.

Ele era o artista
às vezes autista
autor e leitor das correspondências.
O em si das cantatas
subia das folhas:
então descrevia
tons miudinhos
das claves e bemóis.

Muitas horas compunha
colcheias inefáveis
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nascidas de estrelas
ou das cartas sem resposta.

A resposta viria
um dia, algum dia
do cúpido violino
amigo e inimigo
melhor.

Cavando sonetos
nas cartas roubadas
punha letra nos motes.
Aí a melodia
crescia nas pausas
do ingrato e divino
violino.

Stradivarius em sintonia
com os anjos do céu
mana até hoje
sobre as orquestras
o fel e o mel.

PORQUE FREUD VIU SÓ METADE DA MAÇÃ

         Quando se fala em publicidade, eu fico com os dois pés e as duas mãos para trás. Tudo começou quando li alguém dizer que, se quiser, ela pode fazer com que as pessoas comam arame farpado, capim, papel e caco de vidro. Cruz credo!
            Eu sou bobo demais por não ter percebido há mais tempo ser a dona Publicidade o motor que faz o mundo dos negócios e das relações humanas girar.
            Não vivemos numa sociedade de consumo? Pois, então: todos querem vender seus peixes, sejam eles sardinhas ou salmões. Um que tem demais é piranha; lá pros lagos de Brasília, ouvi dizer que tem muito tubarão. O peixe pode ser concreto, abstrato, sensitivo, olfativo ou palatável. Dizem as más línguas que até as pessoas se vendem, e tudo se resume em saber por qual preço.
            Quando falo assim, uma lágrima quase que rola pelo meu rosto. E tudo porque cresci e me formei na ilusão de que a liberdade seja o dom maior da vida. Superficialmente, quero crer que seja. Mas, quando mergulho mais fundo nas considerações, vejo que estamos presos em cordas de diferentes tamanhos e que nos dão a falsa ilusão de que podemos decidir por nós mesmos. No fundo, a bem da verdade, não passamos de marionetes.
            Somos manipulados pela publicidade, ela que vasculha o inconsciente coletivo em busca de secretos desejos. O ser humano é movido pelos desejos, e a publicidade vende seus produtos para atendê-los.
            Que bicho complicado é o ser humano! Embora movido pelo desejo, ele é também um ser de necessidades. Aquele pode ser comprado, mas as necessidades não se vendem, elas não estão no compartimento do ter, mas do ser.
            Antes que alguém me atire uma pedra ou me dê um tiro no meio da cabeça, eu explico: necessidades são as exigências de realização, aquilo que nos ajuda a desenvolver nosso potencial e nos torna seres únicos, irrepetíveis, originais.
            Como os indivíduos hoje são moldados pelo consumismo e buscam atender tão somente a seus desejos, eles se tornam seres desfigurados, des-persona-lizados. E o que vemos? Pessoas (!) com nomes distintos, com aparência física nem tanto original (por causa dos figurinos, do modismo, das plásticas, dos botox), mas que são vazias de identidade própria. É por isso que a sociedade é descrita como de consumo e os indivíduos vivem massificados. Eles, para o Sistema, até perderam o nome, são identificados por números, de CPF, CIC, CEP, conta bancária – uma coisa mais fácil e lógica.
            Então, veja bem, eu que estou chegando ao fim destas considerações, imbuído do propósito de não aborrecê-lo: existe a dona Publicidade, correto? Mas ela é uma dona que tem dono, o Sistema. E o Sistema? O Sistema também tem dono, o Dinheiro. É por isso que vivemos no Sistema Capitalista, entendeu?
            De minha parte, eu queria que a publicidade fosse usada para repassar informações, que estivesse a serviço das pessoas. Mais do que tudo, queria que as pessoas não abrissem mão da liberdade. Porque sei que, só assim, poderemos ser felizes.

Etelvaldo Vieira de Melo   

CLÍNICA ACONCHEGO

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E eu? Eu sou engenheira, gosto de Matemática. Queria um professor desta matéria para me acompanhar, mas esta doença degenerativa não deixa. Fico o dia inteiro colorindo, tenho 62 anos, felizmente meu filho me deu esta cadeira de rodas. O que ele pode fazer? Não tenho mais o controle do braço direito, então vou colorindo com o esquerdo. Nesta parte eu vou fechando. Acho essas velhinhas da Clínica um barato, elas se saem muito bem nas atividades. Tá vendo sua mãe? Com 98 anos, quando não está na cama, responde a tudo que consegue ouvir. É uma pena ela não escutar nada. Coitadinhas dessas velhinhas! Coitadinhas! Tadinhas. O meu filho nasceu no Vera Cruz. Ah, é? Você já ficou no Vera Cruz? Acho que sua mãe quer ir pra cama, mas ela tem que ficar acesa até a hora da sopa. Ah, eu sei! Também não gosto muito de sopa, entendeu? Ah, você também não gosta. Francês, eu sei. Estudei na Aliança Francesa durante muito tempo, mas não quero lembrar nem da Engenharia, isso ficou para trás, nem da velha Aliança. Eu fico cansada e é por causa da esclerose múltipla. Pode pedir à enfermeira para me levar ao banheiro? Acho que não tem papel. Você vai pedir? Obrigada. Fica aí, com sua mãe vendo a televisão, eu volto logo. É bom conversar com alguém, eu me sinto mais alegre. Pode ser até que eu arranje o professor, mas você sabe, não tenho um tostão, meu filho é quem paga a clínica. Vou ter um neto como você. Bom, não é? Com licença agora, que eu tenho incontinência, acabo urinando na roupa. Enfermeira, achou o papel? Então, vamos. 

O NÓ DAS RELAÇÕES INTERPESSOAIS

Falar deste tema (relações interpessoais) pode ser perigoso. Tão perigoso que imagino, imagina, meu amigo Mário Cleber, ele que já não está mais aqui entre nós. Está torcendo o nariz; enquanto isso, me olha com fina ironia, através das lentes de fundo de garrafa de seus óculos. (A fina ironia não machuca, por causa de seu anestésico, importado de famoso laboratório europeu.)
Mas eu lhe pergunto, caro amigo: fazer o quê? Quem tem que dar conta de produzir um texto toda semana? Chega hora que a gente atira pra tudo quanto é lado. Buscando um tema, posso estar entrando em outras searas ou competências. Posso até estar me atolando nas areias movediças da chamada autoajuda.
Devo confessar: este tema sempre me incomodou. Principalmente na minha adolescência. Era quando eu comia o pão que o diabo amassou com o rabo. Depois, remexia com o chifre e o tridente. Agora, não sei o que significa ser adolescente. Se for passar o que passei, pode contar com minha solidariedade. Desconfio, no entanto, que o contexto de hoje seja mais light, quando não mais diet.
Quando adolescente, eu fazia muitas coisas estranhas. Eu gostava de ler, por exemplo. Eu lia Sartre e achava bonito ele dizer: “o inferno é o outro”. Ele também dizia (e eu gostava mais ainda): “o outro me incomoda, nem que seja respirando o ar que poderia ser meu”. Sartre havia escrito um livro chamado A Náusea, e era assim que eu me sentia, pobre adolescente, tomado de náusea. Julgava que as pessoas eram fingidas, falsas, interesseiras. Eu lamentava tudo isso, mas o que mais me incomodava era achar não ser compreendido, não ser aceito, não ter uma pessoa sequer para estender a mão e me levantar da lama na qual estava jogado.
Naquela época, era moda acreditar na incomunicabilidade. Sartre e os existencialistas falavam muito disso. Tanto que serviram de inspiração para um grupo de cineastas franceses. Eles criaram uma escola cinematográfica chamada “nouvelle vague”. A câmera desse pessoal era preguiçosa, só você vendo. Ela ficava muito tempo parada, com foco num cara sentado. Isso durava quase meia hora de filme. Quando acabava a sessão, você saía do cinema sem ter entendido nada. Mas isso é que era o chique da “nouvelle vague”. Quanto mais obscuro o filme, melhor era considerado.
A “nouvelle vague”, por sua vez, inspirou o cinema tupiniquim. Foi quando surgiu o chamado “Cinema Novo”. A inovação que apareceu por aqui foi que, ao invés de focar um cara sentado na cadeira, a câmera mostrava uma galinha ciscando. Isto se tornou um selo de identificação do cinema novo: a galinha ciscando.
Quando adolescente, vivenciei todos os nós possíveis e imagináveis das relações interpessoais, inclusive o famoso nó de escoteiro, um dos mais difíceis de desbaratar. Eu vivia mendigando uma amizade, nem que fosse usada e de quinta categoria. Para isso, para que tivesse um pouco de aceitação, eu permitia que me colocassem apelidos. Teve época que cheguei a contabilizar mais de cinquenta.
Na busca de aceitação, eu me anulava frente aos outros, eu era o que eles queriam, um rapaz “bonzinho”, que não incomodava, subserviente e de quem podiam rir à vontade.
Tudo isso, no entanto, não bastava, porque sempre queriam mais, sempre me cobravam algo de novo.
Se eu pudesse transpor minha adolescência para os dias atuais, diria que o nó da relações entre as pessoas tem a ver com nossas carências afetivas, com nossa busca de aceitação e de valorização, de como mendigamos carinho, afeto. Ao fim e ao cabo, esbarramos sempre na incapacidade das pessoas de disporem de si mesmas, de se tornarem uma “terra boa” para os outros.
Por mais aborrecido que possa parecer um adolescente, o que ele pede é aceitação, um olhar de apoio, de solidariedade, empatia. Ele necessita ser valorizado, quer que seu potencial seja bem aproveitado. Em resumo, enquanto adolescente, sempre quis ser amado. Não será isto que eles pedem também hoje em dia?
Fica, então, este desfecho que não fecha nada. No fundo, o que queria mesmo era mexer com os brios dos adolescentes, mandar pra eles um abraço. Vejo que muitos adultos e muitos pais estão preocupados em busca de palavras para lidar com os mais jovens, com seus filhos. Entretanto, parece que as palavras se tornaram vazias, sem sentido. Para eles, eu pediria que olhassem seu próprio passado, os tempos de adolescência, tomassem jeito para lidar com as novas gerações. Rever a própria história não vai dar a receita mágica para entender os novos adolescentes, mas pode ajudar na disposição, na maneira de olhar. O que é bom começa no olhar; quando esse olhar é de amor, vale mais do que mil palavras.
Etelvaldo Vieira de Melo


ALGUMAS QUESTÕES


         - 1 -
Toda a gente
o que é que faz
se o ponteiro do relógio
resolver andar pra trás?
         - 2 -
Poesia vestidinha
de asa e treta
vira bruxa
ou borboletra?
         - 3 -
O pinto que sai do ovo
pode achar
o mundo novo?
         - 4 -
Imagem: jornaldosbichos.blogspot.com
Quantos anos
tem um dia
de alegria?
         - 5 -
O que acontece com o rio
quando a nuvem
sente frrrio?
         - 6 -
As flores
são
sempre-vivas?
         - 7 -
Está na cara
que
o tempo passa?
         - 8 -
De que caixa
de lápis de cor
Deus tirou o beija-flor?


GRITOS, SUSSURROS E PALAVRÕES

       Estava assistindo a um casamento; ao meu lado havia um casal de conhecidos. Daí, como é normal em tais circunstâncias      , houve muitos comentários e brincadeiras. Teve uma hora em que o conhecido falou, referindo-se ao noivo:
            - Está querendo colocar muita areia em seu caminhão – querendo dizer com isso que a noiva era mais bonita do que ele merecia.
            Ouvindo aquilo, eu disse – o que contou com o imediato apoio da esposa do analista de carga:
            - Se eles se amam, que sejam bem felizes. O mundo de hoje precisa disso: de felicidade. Quanto mais as pessoas forem felizes, melhor será o mundo em que vivemos.
            Estimado leitor: Hoje estou precisando falar de um tema sério. No entanto, mesmo por razões médicas, prometo usar de anestésicos, aqui e ali, para que a leitura não seja tão dolorida. Peço-lhe desculpas pelo transtorno, ao tempo que lhe agradeço pela compreensão.
            Vivemos este paradoxo: queremos ser felizes, mas a felicidade alheia nos incomoda, como se ela pudesse diminuir a nossa própria.
            Creio que isto seja reflexo da estrutura capitalista na qual a sociedade está fundada. A felicidade é tratada como um bem que pode ser comprado; aliás, ela é vista como um somatório de bens: quanto mais posses você tem, mais possibilidades terá também de ser feliz.
            Talvez seja por isso que muitas pessoas negam aos outros a oportunidade de terem bens, porque temem que, assim, a própria felicidade fica diminuída. O capitalismo parece dizer: tenha, consuma, e que os outros se danem; tenha, consuma, de preferência aquilo que o outro só poderá desejar.
            Talvez seja esta a razão da implicância de certas pessoas, quando a viagem de avião se tornou acessível a uma camada da população que não podia usufruir deste bem.
            Tudo bem que o capitalismo seja assim. Entretanto, é preciso um pouco de bom senso para que as desigualdades sociais fiquem no limite do suportável. Era isso que apregoava um comunicador, “ó, meu!”, lembrando (hoje ele já não fala mais isso): um pouquinho menos de desequilíbrio social é uma questão de bom senso, de sobrevivência. Do jeito que as coisas iam, as pessoas em melhor situação na escala social corriam o risco de viverem confinadas. O perigo continua real e imediato, apesar de tudo, mas tem muito a ver com as drogas e a violência decorrente. A paranoia com segurança se alastrou e já atinge a população como um todo, deixou de ser privilégio das castas mais abastadas.
            Porque não dispomos de uma classe política que saiba ler e dar uma resposta apropriada aos nossos anseios e às nossas necessidades, verificamos uma explosão de acontecimentos de imprevisíveis consequências.
Eu poderia detalhar com exemplos de atos de intolerância religiosa, de racismo, de misoginia (na figura da presidente do país), de homofobia. Faço registro de três questões que me incomodam.
A primeira faz lembrar aquele poema atribuído a Mayakovsky, mas que é de autoria de Eduardo Alves da Costa: quando roubam uma flor de nosso jardim, pisam as flores, matam nosso cão, roubam-nos a luz... matam nosso sonho e esperança. Estou me referindo ao desencanto com um partido político que se fazia paladino da integridade, da moralidade na vida pública; depois, com o tempo e o poder, ele se mostrou como os outros, “farinha do mesmo saco” – fazendo uso de uma expressão popular.
A segunda: a constatação de que não temos uma classe política à altura do povo. Como bem lembrava Millôr Fernandes, “deve haver, escondida nos subterrâneos do Congresso, uma escola de malandragens, golpes, perfídias e corrupção. Não é possível que tantos congressistas já nasçam com tanto nourrau”. O que observamos neste Congresso é puro fisiologismo, pura demagogia, puro oportunismo.
A terceira e última questão mexe com aqueles que, através de redes sociais e imprensa, extravasam sua indignação com vocabulário ofensivo. Ao invés de apresentarem argumentos, partem para a agressão verbal. A ofensa desqualifica a crítica, derruba a razão. É tanta gritaria, são tantos os palavrões, que cheiram a fanatismo. É aí que mora o perigo, já que o fanatismo é via de mão única, sem volta.
Por esses dias, esbarrei, nas ruas da cidade, com um cidadão ostentando, dependurado no peito, um cartaz com os dizeres: “Sou culpado por não ter ensinado meu povo a votar”.
Queria ter tido uma conversa com aquele sujeito, para que ele me explicasse como votar. Ficaria feliz em aprender com ele a lição. Entretanto, penso que a questão não é essa de que o povo não sabe votar. De A a Z, a escolha estará errada, com essa estrutura podre e viciada de nosso sistema político.
Caso aquele cidadão, respeitável e imbuído das melhores intenções, não apresentasse argumentos convincentes, eu haveria de me posicionar ao seu lado, portanto um cartaz com outra máxima de Millôr: “Cidadão, não deixe de votar. A corrupção precisa de você”.
Etelvaldo Vieira de Melo

Moral Básica das Rosas

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O ipê floresce em cores multiflores
despetalando azuis e amarelos.
Os canteiros alegres reverdecem
e os passarinhos vêm pra vivê-los.

Parece a vida sempre primavera
quando se anda em plena Liberdade.
Os lírios e as hortênsias amenizam
o torpor permanente da cidade.

Entretanto, a ilusão se desvanece
no passante que a história não esquece:
a Praça onde a beleza reinará

foi posta à venda e há anos foi trocada
pela loucura de serem destroçadas
as montanhas, retratos de BH.


ADMIRÁVEL 1984

                                                 Eh, ôô, vida de gado / Povo marcado, ê / Povo feliz / Eh, ôô,     vida de gado /  Povo marcado, ê / Povo feliz  –  Zé Ramalho.
           
Em períodos eleitorais, sempre sou assaltado pelas suspeitas de que os institutos de pesquisa: > dispõem de eleitores-padrão (já que não conheço pessoa que tenha sido entrevistada por um desses institutos – você conhece?); > sejam movidos por sensores olfativos (como cães especialistas na arte de focinhar, os institutos, através de seus faros aguçados, captam o crescimento ou a queda nas intenções de voto dos candidatos); > funcionem à base de muitos “Deus Seja Louvado” (notas de dinheiro).

Pode parecer implicância de minha parte, mas tenho muitas razões para defender a tese de que o nome de Deus seja retirado das notas de real. Duas delas: é um direito constitucional a liberdade de crença religiosa; daí, é uma ofensa aos ateus o fato das notas estarem impressas com aqueles dizeres. A segunda razão joga em defesa do próprio Deus, como se ele precisasse disso. Se tem um lugar que serve mais ao diabo e no qual Deus não gostaria de estar, esse lugar é uma nota de dinheiro.

            Feito este reparo, vamos ao ponto principal de nosso discurso. Tem a ver com os institutos de pesquisa de opinião. Já mencionei três razões para orientá-los.

            Uma quarta razão me ocorre agora, trazendo à minha mente as lembranças de Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e 1984, de George Orwell. Ambos descrevem sociedades distópicas, divididas em castas, onde as pessoas são monitoradas e, consequentemente, não dispõem de liberdade. A literatura e os filmes de ficção científica, em geral, batem nesta mesma tecla (V de Vingança, Jogos Vorazes, Blade Runner, Divergente, Matrix, Minority Repport, O Doador de Memórias...).
            Já reparou que, quando faz uma compra ou uma pesquisa de preço pela Internet, imediatamente você se transforma num torrão de açúcar, com milhares de formigas em sua volta, entupindo sua caixa de e-mail com propaganda? Pois é, dá até medo pensar o que podem fazer com as informações que repassamos através dos telefonemas, dos e-mails, bate-papos, postagens no facebook...
            Como sou sempre solicitado a permitir a invasão de minha privacidade por programas e aplicativos de computador, querendo saber do meu número de CPF ao número de meu calçado, não tenho medo de afirmar que o olho do Todo Poderoso, o Grande Irmão, o Big Brother, o Sistema, monitora nossos passos e, quiçá, nossos pensamentos. “O Grande Irmão está de olho em você” – já antevia Orwell, em 1948.

            Eu mesmo disponho de um aparelho de videogame, com um visor que capta minha presença e tira fotos minhas. Não será que, sem querer, seja eu um desses pesquisados pelos institutos? Vai que o dito sensor disponha de um gravador que registra minhas conversas. Inocentemente, estarei repassando informações que deveriam ficar restritas ao aconchego de meu lar.

            É sabido que os cães já atingiram um patamar de dignidade superior ao dos humanos. Ora, uma amiga foi levar a cadela de sua irmã para ser esterilizada e o veterinário implantou-lhe um chip, visando monitorá-la (a cadela, que fique bem claro). Assim, onde ela estiver, o Departamento de Animais saberá dizer. Mas me pergunto: se isso já acontece com os cães, não é de se supor que já aconteça com os humanos há mais tempo?

            Enquanto faço estas considerações, percebo que devo tomar mais cuidado com minhas atitudes, mesmo (ou principalmente) estando a sós, num banheiro, frente a um espelho.

            Ano passado sofri uma intervenção cirúrgica, aparentemente para implantar um stent. Quem me garante que, junto ao stent, não sofri implante de um chip que passou a registrar todos meus pensamentos, atos e omissões?

            Não é paranoia, mas tenho a convicção que, de algum lugar, alguém me acompanha, está de olho em mim, dando conta até da cor da cueca que estou usando. Vixe!
Etelvaldo Vieira de Melo