A postagem
desta semana é de autoria de Ivani G Cunha, grande amigo.
Imagem: barbaranonato.wordpress.com |
Todos em casa estranharam quando o homem estacionou o carro na
garagem sem dar a freada brusca de costume. Abriu com calma o porta-malas para
tirar a pasta e alguns livros. Depois saltou para a sala sorrindo, como não
fazia desde um tempo do qual nem ele mesmo se lembrava mais.
O cachorro, habituado a cochilar atrás da porta, estava próximo da
entrada e não arredou do lugar. Parecia um pouco desconfiado. A mulher e os
filhos também preferiram ficar no seu canto, uns cuidando de suas tarefas e os
outros queixando-se da falta do que fazer. Melhor esperar que o homem se
explicasse. Mas, em vez de explicar alguma coisa, ele emitiu um sonoro
boa-noite, que ecoou pela casa, e beijou a mulher como no tempo de namoro.
Difícil imaginar motivo dessa mudança. No trabalho, o clima
continuava tenso por causa da mudança de chefes, introdução de novas normas e
implantação de inúmeros projetos que sobrecarregavam a área de atuação do
homem. Ele falou sobre esses problemas, e isso também era de estranhar, porque
nunca se referia aos obstáculos do seu dia a dia. No entanto, parecia que
aquelas dificuldades não o afetavam nem um pouco, pois o sorriso de muitos
dentes não se afrouxava.
Naquela noite ele assistiu ao telejornal com paciência, sem
criticar a mediocridade de alguns textos, a abordagem superficial dos assuntos,
os equívocos cometidos pelos jornalistas na apresentação de alguns temas que deveriam
merecer apuração mais rigorosa. Mais uma vez eles falaram sobre a gripe aviária
em tom alarmista, sem deixar claro que o problema ainda está restrito a outros
países e que, no Brasil, o vírus representa apenas uma ameaça. Mais uma vez,
também, os editores não reservaram tempo suficiente para fazer referências ao
trabalho desenvolvido pelo governo e a iniciativa privada para proteger o
agronegócio avícola da influenza aviaria. Talvez imaginem que isso esfriaria a
matéria, que afinal falava de mais um caso da doença registrado em país
asiático. Enfim, estava tudo igual, reforçando a impressão de que é perda de
tempo buscar uma relação entre a realidade e os fatos apresentados na telinha.
O homem não estava preocupado com isso naquele dia. Um dos filhos
prestava mais atenção no pai do que no programa, e até poderia apostar naquele
momento que, de repente, o homem voltaria a agir normalmente. Agora, pai e filho assistiam, sem reclamar, a um dos
capítulos mais fracos da novela do horário nobre. O garoto até pensou que
estivesse ao lado de um clone do pai crítico e intolerante de cada dia.
Apesar dos recursos da nova tecnologia, não se tratava de uma
cópia do pai. Era o próprio, embora fosse nova a expressão de paz no seu rosto,
a voz calma e baixa, que obrigava todos a chegar mais perto.
Foi o primeiro dia de uma grande mudança e todos na casa
acostumaram-se ao novo homem que continuava a sair de casa bem cedo e retornava
ao anoitecer, mas agora sempre com um sorriso e comentários amenos, carregados
de fina compreensão, sobre tudo e todos.
Nunca mais se ouviu o homem censurar os familiares que não
anotavam os recados de telefone para ele. Também parou de insistir com os de
casa que lessem mais para exercitar a memória, pois não suportava
esquecimentos. Nada mais era importante agora do que a harmonia do lar, o bem-estar
de todos, a paz com longos braços para alcançar inclusive as pessoas de fora.
Parentes, amigos e vizinhos também notaram que o homem havia
mudado, mas ninguém comentou. Havia sempre o medo de que ele sofresse uma
recaída. Por precaução, a família tratou de tirar o máximo proveito do estado
de graça e paz do homem. Agora ele atendia a todos e participava de programas
que jamais o interessaram. Na véspera de um feriado prolongado, mandou a mulher
e os filhos arrumarem as malas. Saíram sem rumo e sem pressa, entrando em
estradinhas esburacadas que levavam a cidades desconhecidas, onde passavam
horas travando amizade com as pessoas, experimentando a comida e a bebida
locais. Sempre retornavam à estrada carregados de lembranças e com novos amigos
registrados no diário – endereço, telefone, e-mail, tudo em letra de forma para
não haver risco de erro em futuros contatos.
Era a prova definitiva: o homem passara mesmo por uma profunda
conversão. Milagre dos bons.
Todos viveram felizes ao seu lado, até o dia da avaliação anual de
saúde na empresa onde ele trabalhava. Os exames comprovaram os benefícios
físicos da mudança de vida. Mas depois de uma longa entrevista com a psicóloga
ele foi encaminhado a uma clínica psiquiátrica conveniada com a empresa.
Isso foi há pouco mais de um ano. Desde aquela época o homem está
recolhido num conceituado manicômio, onde não dá trabalho nenhum, embora sinta
às vezes um pouco de saudade da família. Conforma-se e agradece ao destino, que
lhe reservou um lugar como aquele, onde sempre há pessoas com todo o tempo do
mundo para ouvir suas longas histórias, recheadas de mensagens de paz,
harmonia, tolerância, amor ao próximo e à natureza.
*Ivani Cunha / Jornalista
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