CHÁ DAS CINCO

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Márcio Camargo - Releitura sobre Vemeer


Grieta, 17 anos, vem visitar-me para o chá.
I
Fecha a porta, e se vira por cima do ombro esquerdo,
a fim de observar... o quê? Continua a moça delicada de lábios vermelhos,
ligeiramente entreabertos. Está sorrindo? Talvez, nunca se sabe.
Vejo-a usando uma faixa azul torcida por cima dos cabelos,
blusa modesta, semelhante à monalisa holandesa.
Olha-me diretamente nos olhos. Interrogo-a sobre a escola, mas a jovem confessa:
“Precisei largar os estudos.  A família passa por dificuldades financeiras.
Consegui um emprego de lavar, passar, e opinar a respeito dos quadros
do senhor Jan. Também o ajudo a preparar as tintas,
mas nem a camareira, nem a esposa gostam de mim.”.
A tarde passa. Filmamos o chá e prosseguimos na conversa,
relatando fatos corriqueiros acerca de nós ambas.
Ao final, curiosa, ela quer saber se conheço alguma rica
interessada em comprar brinco de pérola.
Graça Rios

TROCANDO OS PÉS PELAS MÃOS

Os colegas do rádio (e da TV) costumam se esquecer de que futebol se joga com os pés.
Ivani Cunha

A CHINA, EU E O CAMINHÃO DO “OLHA O OVO!”

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Imagem: motarumnegocio.com
Dizem as más línguas que os sentimentos de amor e de ódio são bem próximos, basta um escorregão numa casquinha de banana para a gente passar de um para o outro.
Meus sentimentos com relação à China já levaram muitos escorregões, passando por vários estágios.
O primeiro deles foi de medo, quando existia o comunismo e ele era tido como coisa do capeta. Quando via imagens da Praça Vermelha e da figura de Mao Tsé-Tung, meu corpo era tomado de tremedeira.
Depois, foi de indiferença meu sentimento, quando me dei conta de que a China está do outro lado do mundo, e eu tinha que cuidar das preocupações e dos afazeres próximos.
Há pouco tempo, por causa de seu boom industrial e da invasão de seus produtos, passei a cultivar um sentimento de admiração. Junto, tive o reconhecimento de que ela estava socializando os bens de consumo, quebrando as barreiras entre ricos e pobres. Foi quando incorporei um termo ao meu vocabulário, “dicotomia”. Você podia me ouvir dizendo, então: “- A China está quebrando a dicotomia entre ricos e pobres no nosso país!” – e olhava para as pessoas, buscando reconhecimento pelas belas palavras, enquanto ostentava boné, camiseta, tênis, relógio – tudo de marca, falsificado.
Foi um período em que mergulhei fundo na pesquisa e na aquisição de tais bens. Em minha cidade, a prefeitura, com o intuito de tirar os camelôs das ruas, propiciou a criação de vários shoppings populares. Por esse tempo, qualquer pessoa que conversava comigo queria saber, em tom de gozação, se já tinha ido por aqueles dias num daqueles shoppings (e eu ia muito a esses shoppings; cheguei até a fazer amizade com um china, o Hangai). Parecia que meu mundo girava em torno disso: comprar bugigangas importadas da China, especialmente eletrônicos.
O tempo passou, e meu inconsciente chamou a atenção do consciente para o perigo que o estado natal corria: a extração de minério de ferro, para ser exportado para a China, estava tornando o terreno uma casquinha de ovo. Se acontecesse por aqui um abalo sísmico, todos seríamos soterrados. Fiquei revoltado.
O sentimento de revolta levou ao ódio, especialmente quando o país se viu mergulhado numa crise econômica. Hoje, procuro valorizar aquilo que é “made in Brazil”, com crises de alergia e urticária para o que é “made in China”.
Bom, como até o capitalismo é cíclico, nossos sentimentos também não deixam de ser, ou seja, um novo amor para com a China pode brotar dos escombros de meu ódio.
Só que estou achando um pouco difícil, depois que fiquei sabendo da história do ovo.
O golpe que aconteceu no Brasil em 2016 fez o favor de provocar desemprego e penúria na população mais simples. Se comer carne já era difícil, com os novos tempos, tornou-se proibitivo. No entanto, o consumo de proteína ficou garantido com a disseminação do ovo de galinha.
No meu bairro, todos os dias é frequente rodar um caminhão, onde alguém, através de um serviço de alto-falante, esbraveja:
- Olha o ovo, minha gente! Ovos fresquinhos, direto da granja! Pode se aproximar, meu senhor, minha senhora. Trinta ovos por dez reais, só dez reeeais. Olha o ooovo!
E a patuleia desandou a comer ovo: no café da manhã, no almoço, no jantar, na mesa e na sobremesa.
Só que, agora, está chegando ao nosso conhecimento o boato de que podemos estar consumindo.... ovos de plástico, produzidos na China! Pode até que isso seja Fake News, mas estou tomado pela dúvida. Pelo sim, pelo não, quero ir até o homem do caminhão e exigir a presença de pelo menos uma galinha. Ela vai ter de confessar de viva-voz que os ovos saíram mesmo de seu fiofó e dos fiofós de outras galináceas. Como já dizia Guimarães Rosa, mineiro não sabe de nada, mas desconfia de quase tudo.
PS: usei o termo “fiofó” porque o usual, “c*”, ficou politicamente incorreto. Que o diga nossa amiga Márcia Tiburi, ameaçada de perder uma eleição por causa de mísero monossílabo.
Etelvaldo Vieira de Melo

NÓS DOIS CISNES

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Imagem: idilioliteratura.blogspot.com
Penso nele, Mc,
e essa imagem  me oprime.
Em nossa relação de um dia, ó musamiga,
um vivo signo emudeceu.
O Doce, esse grande rio,
por onde passeávamos, evadidos  da gaiola,
ainda fecunda campos,
índios, ribeirinhos, mães-dágua, cultos silvícolas in memoriam.
Sou sofrida, mas não me calo. A areia clara ilumina-me a memória.
Apesar de tudo, flores, peixes, conchas, orações,
não esqueci o abandono mineral.
Penso nele, tão longe das minhas margens.
Creia,  Andra, nada em minha melancolia findou.
Viso a escapar do amar pelo céu irônico, cruelmente azul, também
do  mito fatal desta história fisgada.
No entanto, o passado me olha de viés, pois a água fêmea nutriente, em mim, secou.
Andrômaca, viúva de Heitor, ausculta a sua
companheira de dor:
Eu também, como todos os exilados daquele frondoso temp(l)o,
penso nele, flúvea, e sinto que, para o futuro,
nós cisnes amantes somos
merda vil, poluição, dejeto,
sob a mão do soberbo destruidor.
Graça Rios

TÁ CHEGANDO OU INDO EMBORA?

Você já observou que, nas entrevistas de TV, o repórter costuma empurrar com a barriga o cumprimento ao entrevistado? Essa esquisitice tem nome: "Escalada".
Ivani Cunha


IMPERATIVO CATEGÓRICO

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Imagem: euquerosabertudo.com
É preciso desconfiar da dor fingida
É preciso aceitar as chatices da vida
É preciso cultivar o olhar de criança
Não deixar que morra a esperança.

É preciso amar sem consideração
É preciso a ciência de dar perdão
É preciso suportar a dor de uma ausência
É preciso seguir as trilhas da paciência.

É preciso deixar o jardim florir
É preciso que as flores falem poesia
É preciso que o mundo volte a sorrir
E que o sol seja novo todo dia.

Acreditar: no fim do mundo tem um tesouro
Aprender: é na arte do voo que está o ouro
Saber: a vocação do navio é mais partir do que chegar
Enxergar: nenhum vento ajuda quem não sabe pra que porto velejar.

É preciso ser amigo da fantasia
Aceitar que tudo não é só alegria
É preciso deixar falar a emoção
Até chorar de doçura e compaixão.

É preciso entender, é preciso ter atenção:
Se meus versos são pobres
Se não uso de palavras nobres
... É que mais pobre está meu coração.

Etelvaldo Vieira de Melo

ENQUANTO NÃO VEM O SONO

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Imagem: obaoba.com.br

O sono tarda.
Ouço música para stress, escrevendo o diário.
Recorto à tesourinha um cromo na revista, colo no espaço onde haveria versos
dedicados  ao amor, à flor, à chuva fria que cai lá fora.
Folheio páginas atrás, desejando saudades entre papéis de bombons  fotos
bilhetinhos  fitas  retratos de viagens  pensamentos frases  em  inglês  francês  desenhos
eróticos das amigas       
corações em sangue flechados por Cupido madonas  flores ressequidas perfumadas com spray
astros de filmes nam
O diário para mim
é o maracujá das horas de medo
e maus sonhos.
Graça Rios

NO CALOR DA MODA

Faça a leitura correta das correta das cores da moda para evitar dores e apreensão.
Ivani Cunha

PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DE MARXISMO E DE OUTRAS CHATICES

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Imagem: ghiraldelli.pro.br
Estimado Leiturino: já observou você que, no Brasil dos últimos anos, virou moda xingar as pessoas dizendo que são comunistas? No início, corriam soltos os palavrões tradicionais; no entanto, vendo como pegava mal tal vocabulário, os extremistas decidiram resumir tudo de chulo numa só expressão: “comunista”. Basta alguém demonstrar uns dez por cento de sensibilidade social para que um outro esbraveje: - Seu comunista safado!
Só pode ser isso. Outro dia mesmo, estive lendo um fulano dizer que o Agnaldo Timóteo, aquele que cantava Mamãe e Os Verdes Campos de Minha Terra, é... comunista, só porque falou uma palavrinhas em defesa de Lula. Pensei comigo: - Por tudo que está no céu, já não entendo mais nada!
Como o tema está na moda, e não querendo passar por alienado, estou decidido a meter minha colher no assunto. Como quase sempre, recorro aos préstimos de um expert. O convidado de hoje é o Leovigildo Amendoeiras (Leo, para os íntimos). Suas considerações:
Marx disse: “O trabalhador só se sente a vontade no seu tempo de folga, porque o seu trabalho não é voluntário, é imposto, é trabalho forçado”.  Grande mentira! Fake news! Para comprovar, basta observar os fins de semana. Já na sexta-feira, os trabalhadores são tomados de tristeza, ansiando pela volta da segunda-feira. Foi por acreditar na dignidade do trabalho, no seu valor e na alegria que proporciona, que os legisladores, nossos amados políticos, fizeram no Brasil uma reforma, aumentando o tempo de trabalho.
Definitivamente estou abrindo mão de me tornar imprescindível. Isso foi depois de ler esta citação de Brecht: “São bons aqueles que lutam um dia; melhores, os que lutam um ano; muito bons, os que lutam muitos anos. Para ser imprescindível é preciso lutar toda a vida.” Ufa! Isso dá uma canseira danada! Melhor é ser descartável.
Com língua ferina, Brecht comenta: “Melhor do que roubar bancos é fundar um. O que é roubar um banco comparado a fundar um?”. Para mim, a diferença entre roubar um banco e fundar um é que, ao fundar um banco, você passa a roubar de muitos, sem muito risco de ser preso e ver “o sol nascer quadrado”. Roubar banco só é bom mesmo na série A Casa de Papel.
Quando Brecht fala “todo mundo chama de violento a um rio turbulento, mas ninguém se lembra de chamar de violentas as margens que o aprisionam”, pensando bem, não está ele contrariando o dito de que “o hábito não faz o monge”? Não está ele retomando a velha tese de Rousseau de que o indivíduo é bom, mas a sociedade o corrompe? Está bem: são violentas as margens que aprisionam um rio turbulento. Conclusão? Já que é tudo culpa das margens, não se mexe na maioridade penal, embora tudo leve a crer que alguém está determinando quem veio primeiro, a galinha ou o ovo. Enquanto isso, a plebe pratica esporte radical de caiaque entre margens violentas e rios turbulentos, fazendo valer o que dizia Mayakovsky: viver é muito difícil.
A propósito da galinha e do ovo, quem veio primeiro? Sinceramente, não sei dizer: quando levantei a galinha do ninho, o ovo estava lá debaixo dela. Isto não quer dizer que a galinha tenha vindo primeiro e botado o ovo depois; pode ser que outro ovo tenha gerado a galinha e essa, por sua vez, tenha botado outro ovo. Tanta elucubração pode dar em nada: mata-se a galinha, bebe-se o caldo e do ovo se faz uma omelete. Assim, fica resolvido o impasse, ficando tudo do mesmo jeito e tamanho.
- Leo, seu comunista safado, obrigado por suas considerações. Finalizando, quer acrescentar algo, uma cereja decorando este seu bolo de palavras?
- Estou me lembrando daquela máxima favorita de Marx: “Nihil humani a me alienum puto” (Nada do que é humano me é estranho).
Etelvaldo Vieira de Melo

AS NINFAS DO PARADISE

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Imagem: YouTube

Go go girls são ardência, são porrada,
imagens  coladas de  50 tons em chiaroscuro. Ué, ficou manchado, borrou?
A dúvida cartesiana sobre a silhueta,
aqui curva, ali reta, mantenha a linha, controle o peso,
suscita inflamação nos abismos matemáticos.

Go go girls  são a  exposição plena ao contágio
das modenidades.  Mnemosyne perde os ponteiros,
ao esquecer de lembrar os compromissos. Cinema café layout fotografia...
Ô, confusão de fórmulas (in)falíveis! Maquillage, sauna, manicure, cabeleireiro, dindim
´Stamos a fim de um programinha, superstar! Você topa?


Graça Rios

NÃO FOI FRANGO!

Vale ser coloquial na narrativa de futebol, mas algumas expressões são ridículas.
Ivani Cunha

ESCR ITORES FALAM SOBRE O ATO DE ESCREVER (EXERCÍCIO DE REDAÇÃO)


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Imagem: revistacontinente.com.br
     José Saramago: “Somos todos escritores; só que uns escrevem, outros não”. Está aí uma maneira sutil de engambelar, iludir jeitosamente o leitor. É como se o autor de Ensaio Sobre a Cegueira dissesse: “Olha, você até que poderia ser um escritor. Como não consegue, contente-se com a condição de leitor (e não deixe de comprar meus livros)”.
    Comentando o rompimento da amizade entre Gabriel García Márquez e Vargas Lhosa, com direito a soco no olho, o articulista de uma publicação disse textualmente: “aquela era uma amizade que não surge com facilidade no mundo das letras”. Por isso, quando o autor de Memória de Minhas Putas Tristes fala: “escrevo para que meus amigos me amem ainda mais”, faço daí uma inferência: entre seus amigos, raríssimos deveriam ser escritores, romancista talvez não houvesse um sequer.
    Darcy Ribeiro: “Escrever é ter coisas para dizer”. Certo? Acho errado. Se fosse assim, todo mundo estaria escrevendo alguma coisa. O certo é dizer: escrever é ter coisas para escrever. Ninguém escreve se não tem nada para escrever, da mesma forma que ninguém diz nada se não tem nada para dizer.
    Segundo Clarice Lispector, não devemos criticar indiscriminadamente os maus escritores. Embora desprovidos de talento, muitos deles escrevem por vocação: Vocação é diferente de talento. Pode-se ter vocação e não ter talento, isto é, pode-se ser chamado e não saber como ir”.  Sobre ela mesma, diz: Eu escrevo como se fosse salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida."
    Deslize mais ou menos sério cometeu uma senadora e ex-ministra, aquela que, antes da crise de combustível, disse pra gente relaxar. Em sua coluna num jornal, ostentando ares de erudição (hoje, todo mundo se acha no direito), atribuiu erroneamente uma frase a Fernando Pessoa. Acabou se dando mal, sendo corrigida por um leitor atento. Ao invés de simplesmente reconhecer o erro, foi logo jogando a culpa na sua fonte de pesquisa, a Internet, como se ela fosse responsável por sua ignorância. Isso que é querer o bônus sem arcar com o ônus.
    Também corro sérios riscos de me dar mal nas citações. Li em algum lugar esta frase atribuída a Ernest Hemingway: “Escrevi 30 vezes o último parágrafo de ‘Adeus às Armas’ antes de me sentir satisfeito”. Segundo Sérgio Martins Pandolfo, outra fonte de pesquisa, o texto foi reescrito... 80 vezes.
    De minha parte, eu não culparia nem este nem aquele pelo erro. Afinal, 3 e 8 são muito parecidos, o 3 parece um 8 apagado, enquanto o 8 pode ser um 3 borrado. O pior é que não temos mais Hemingway para dizer se foram 30 ou 80 as vezes que reescreveu o último parágrafo de “Adeus às Armas”. Pessoalmente, desconfio que o próprio Hemingway se enganou na contagem, dizendo 30 ou 80. Esses números são muito redondos e um processo de revisão é sempre quadrado, pois sempre deixa faltar alguma coisa. Por mim, diria que o último parágrafo foi reescrito 36 vezes, um número perfeito que, na prova dos 9 fora, resta zero.
    Como você observa, escrever não era fácil para o pobre do Hemingway. Ele disse: “Não há nada para escrever. Tudo que você precisa fazer é se sentar em frente de sua máquina de escrever e sangrar.”
    O mesmo Hemingway, nessa garimpagem que faço pela Internet, disse sobre o ato de escrever: “Corte todo o resto e fique no essencial”. Tudo bem, mas como dar crédito às suas recomendações se outro autor cultuado, Saint-Exupéry, fala que “o essencial é invisível aos olhos”? Se for para juntar um conselho com o outro, não se escreve nada, corta-se tudo, como apregoava Carlos Drummond (“Escrever é cortar palavras”). Ou será que estas palavras não são suas? Armando Nogueira: “Escrever é cortar palavras. Passei alguns anos certo de que o autor dessa preciosa máxima era Carlos Drummond de Andrade. Até que um dia perguntei ao poeta. Ele conhecia, mas negou que fosse dele”. Alguém atribui esta mesma citação a Marques Rebelo. Para quem vou dar o crédito, Dr. Google?
    Chico Buarque que, como compositor, sempre foi um excepcional poeta, embrenhando-se no campo da literatura, disse que “escrever é uma chatice”. Pudera, ele falou assim pouco depois de lançar “Leite Derramado”. Ele tem toda razão: não existe nada mais desagradável do que entornar leite sobre uma toalha novinha em folha. Pior se o leite estiver misturado com café.
    Para quem quiser conhecer o inconsciente dos escritores, grande revelação faz Fabrício Carpinejar. Segundo ele, "cada um escreve do jeito que respira. Cada um tem seu estilo. Devo minha literatura à asma." Já minha “vocação” de escritor, você sabe, nasceu de um distúrbio psíquico-somático chamado PFL, Prolapso de Fim de Curso.
    Se você é um leitor desatento, tome cuidado para não merecer uma reprimenda de Mário Quintana: "Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer é porque um dos dois é burro”.
    Finalizando, quero dizer que estou plenamente de acordo com Pablo Neruda. Segundo o poeta, “escrever é fácil: você começa com uma letra maiúscula e termina com um ponto final. No meio você coloca ideias”. Foi isto que fiz neste texto: comecei com uma letra maiúscula, J, e termino com um ponto final. No meio, coloquei um tanto de ideias, Se você não as achou, é preciso considerar que elas, as ideias, são altamente voláteis. Da próxima, prometo prender algumas (36?) com peso nos pés dos parágrafos.
    PS: Mais razão tem o poeta (e meu professor de Redação) Ronald Claver quando diz: “Escrever é reinventar o paraíso, fazer do limbo um jardim de letras e povoá-los com palavras saborosas, sábias, sedutoras, sedentas”.
Etelvaldo Vieira de Melo

ESCALDO E PERDÃO

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Imagem: borgesogato.com

Acabei de ler o livro Gato Escaldado, de Mônica de Aquino e Humberto Guimarães, Editora Miguilim. Agora, estou incumbida de avaliar e comentar criticamente as obras dessa Instituição. O inFelício personagem me boquiabriu, tanto pela poesia quanto pela ilustração. Trata-se da passagem do animal ferido e marginalizado, até pelos ratos, para um novo habitat receptivo e belo. Inicialmente, propus-me à comparação da história com o nosso povo latino-americano. Abordei, nas sugestões de atividades para a Escola, a situação de escaldo em que vivem os negros, os empregados, as mulheres, os índios. Citei Odisseu, em viagem, tal Felício, pelo mar tenebroso dos sofrimentos. Discursei sobre Riobaldo de Rosa, rio-vazio ante a perda do complexo e desejado Reinaldo/Diadorim. Mencionei Pedro, O Cru, coroando rainha Inês de Castro, morta havia tempos. Fui velejando com os dois autores e explorando-lhes a inteligência criativa num fino fio condutor. Enviei à Editora o serviço, quase satisfeita com a minha escritura. Era tarde da noite.
Entretanto, ao despertar, resolvi jogar uma caixa de papelão no lixo. Percebi, num átimo, no fundo dela, uma chave religiosa. Aí, tive o insight. O desenho de Humberto me revelou a porta aberta a uma releitura das páginas finais do desgraçado Gato. Então, escrevi em tumulto sobre a beleza interior do artista. Vi que o felino saltava do mar de sargaços para um novo ambiente, onde se juntava aos de sua raça. Surgia-lhe o lar à frente, e os ratos carregavam a bandeira da paz. Em lindos versos, sempre curiosamente compostos por ditados populares, Mônica punha-lhe, nas ações e gestos, o perdão a Maria, pela água quente da chaleira em cima do pelo. Água fria já não o amedrontava, no magistral pulo de gato para a conquista da identidade e amadurecimento. O nível superior de esquecer para lembrar drummondiano completava-se na série de cores, imagens, letras, rimas, de Aquino e Guimarães. Meio sem fôlego, digitando um oceano de ideias no computador, terminei a tarefa solicitada, dizendo que o aparente The End continuava per omnia secula seculorum, enquanto perdurassem a injustiça e o preconceito universais.
E em verdade vos digo, caríssimo leitor, que eu, tão pouco afeita aos cultos litúrgicos, olhando Nossa Senhora Aparecida estampada naquela chave matutina, peguei a Bíblia e sugeri aos professores, na última atividade, a leitura do Salmo I com seus amados discípulos.

Graça Rios

CONTA-GOTAS

O cenário é pra chorar e, fazendo um pouco de força, sorrir...
Ivani Cunha

ISTO NÃO É UMA BOBAGEM

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Imagem: jornalggn.com.br
O ditado “a ocasião faz o ladrão” (ou o santo) tem respaldo no estudo científico que estabelece: 1% da população é constituído de pessoas naturalmente honestas; 1% de pessoas desonestas por natureza, enquanto que 98% são pessoas que agirão de acordo com as circunstâncias.
São vários os fatores que favorecem um comportamento desonesto: educação, mau exemplo e sistema econômico são alguns. No entanto, destaco aquele que me parece o principal: a (in)justiça social. Países europeus, (onde as pessoas têm um comportamento honesto) praticam, via de regra, a justiça social. Ali não existe disparidade de salários e todos têm acesso à educação e a um padrão de vida decente.
Já no Brasil, não existe justiça social; aqui, a desonestidade corre solta, notadamente na forma de corrupção.
Num quadro de injustiça social, todas as medidas que não ataquem de frente esse problema serão paliativas, remendos.
Tomemos como exemplo a questão da violência. Você acredita que ela possa ser erradicada tão somente com o aumento do aparato policial, com a construção de presídios ou com a permissão de que as pessoas se armem (como quer um truculento candidato à presidência)? O remédio verdadeiro para a violência se chama JUSTIÇA SOCAL.
Há mais de vinte e cinco séculos, um pensador, Platão, dizia que uma sociedade poderá viver em paz, harmonia e prosperidade se estiver fundada na Justiça. Para ele, Justiça é cada um ter e praticar o que lhe é de direito. A vida em sociedade seria como uma orquestra, onde cada um toca um instrumento apropriado. Se cada indivíduo tivesse e praticasse o que fosse de sua competência, o mundo seria... musical, seria como uma orquestra afinada e harmoniosa tocando uma bela melodia.
Olhando para a realidade brasileira, perguntamos: as pessoas que ocupam cargos políticos estão nos lugares certos? Os atuais magistrados não deveriam trocar de posição com outros? Lembro que a injustiça prospera onde as pessoas estão em lugares errados.
Agora mesmo assistimos a um grupo de juízes e procuradores se arvorando como paladinos da justiça. Esses falsos moralistas falam que estão no combate da corrupção. Gostaria de dar crédito ao seu palavreado, já que a corrupção é uma erva daninha que envenena a sociedade e é difícil de ser extirpada.
Quer saber por que não dou crédito às suas palavras?
- Porque pretendem combater a corrupção de forma corrupta, através do instituto da delação premiada. Ao final, o bandido é premiado: com a liberdade e ainda ganhando um bom dinheiro. Quer corrupção pior do que isso?
- Usam, suas excelências, da máxima de que “os fins justificam os meios”, o que é imoral, dando margem aos mais absurdos recursos, inclusive ao arrepio da lei. O que esperar de um país onde seus juízes pisam na Constituição, a lei maior?
- Caso pratiquem algum tipo de justiça (sem o ônus da prova, baseados mais em suposições), ela é sempre seletiva, preocupada em punir apenas uma parcela dos chamados corruptos, enquanto que outros, comprovados através de gravações, malas e até delações, são protegidos e inocentados.
- Os atos desses juízes e procuradores mostram, afinal, que não estão preocupados verdadeiramente em combater a corrupção, em resgatar a moralidade no país. O que eles querem é garantir o poder para aqueles políticos que nada conseguiriam através do voto popular; o que eles fazem é prestar serviço para o capital financeiro, os banqueiros, para empresas estrangeiras e oligopólios.
- Eles falam que todos devemos estar sujeitos à lei, mas parece que se esquecem disso ao aceitarem salários e auxílios contrários à própria lei.
Para combater a corrupção é preciso a prática da justiça social (cada cidadão tendo o que lhe é de direito) Para haver justiça social é necessário que todos tenham acesso a uma educação decente. Pelo que a gente vê e entende, tudo pode começar com uma reforma do sistema judiciário do país, para que a Justiça seja, de fato, a mesma para todos. O resto, sim, é que é bobagem.
Etelvaldo Vieira de Melo