VERSO E REVERSO

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PARTE 2: O REVERSO

Para Márcia Costa

É atribuída a Sêneca a frase de que “a religião é um pouco verdadeira para os pobres, falsa para os sábios e útil para os dirigentes”.

O dia amanheceu sob sol de primavera, com pardais gorjeando e com flores espalhadas por jardins e praças.

No entanto, no coração e na mente de Matilde fazia inverno, um inverno bem rigoroso. Ela havia passado a noite anterior em claro, cuidando do filho menor que ardia em febre. Agora, mal o Sol despontara, estavam os dois, dentro de um ônibus quase vazio, indo em direção ao Hospital das Clínicas da cidade.

Uma mistura de sentimentos negativos tomava conta do coração de Matilde: angústia, preocupação e tristeza, muita tristeza. Por se sentir assim, frágil, desprotegida, insegura, permitiu que uma torrente de lágrimas deslizasse pelo seu rosto. Ela sabia que, por causa do contratempo da doença do filho, seu mísero salário de diarista estava comprometido naquele dia. Ela lamentava consigo mesma tudo o que passava: a constante falta de dinheiro, o trabalho desgastante, o fato de ter que cuidar dos filhos sozinha, sem a ajuda de um companheiro.

Matilde era muito religiosa. Aos olhos desatentos, pode parecer que sua religiosidade tenha brotado de um vazio existencial, de uma frustação para com pessoas em quem confiou. Mas não. Ela admirava, por exemplo, a atitude de fé e de despojamento de Abraão, quando se entrega totalmente nas mãos de Deus, ao ponto de aceitar a ideia de sacrificar o próprio filho, Isaac. A religião representa em sua vida um porto seguro, como um farol que ilumina seu caminho, um amparo nas adversidades, uma força que ajuda a erguer dos tropeços.

Naquela manhã, no entanto, o máximo que conseguia lembrar era de Jó, em suas Lamentações: “Por que não saí num aborto escondido? A vida do homem sobre a Terra é uma guerra. A minha carne está coberta de podridão e imundície do pó. A minha pele está seca e enrugada. A minha fortaleza não é como a das pedras. Nem minha carne é de bronze.”

Estava tomada por esses sombrios pensamentos quando o ônibus, fazendo uma curva acentuada, entrou numa larga avenida. Matilde olhou distraída para a calçada e avistou uma velha senhora. Ela apanhava de um saco de papel punhados de milho que eram jogados para dezenas de pombos, que acorriam alvoraçados. Vendo aquela cena, Matilde sentiu um alívio no coração. Enquanto enxugava com a manga da camisa um resto de lágrima e dava um beijo na bochecha do filhinho, sua mente era iluminada por outra passagem bíblica:

“Por isso vos digo: Não andeis cuidadosos quanto à vossa vida, pelo que haveis de comer ou pelo que haveis de beber; nem quanto ao vosso corpo, pelo que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o mantimento, e o corpo mais do que o vestuário?

Olhai para as aves do céu, que nem semeiam, nem segam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta. Não tendes vós muito mais valor do que elas?

E qual de vós poderá, com todos os seus cuidados, acrescentar um côvado à duração de sua vida?

E, quanto ao vestuário, por que andais preocupados? Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham nem fiam;

E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles.

Pois, se Deus assim veste a erva do campo, que hoje existe, e amanhã é lançada no forno, não vos vestirá muito mais a vós, homens de pouca fé?

Não andeis, pois, inquietos, dizendo: Que comeremos, ou que beberemos, ou com que nos vestiremos?

Porque todas estas coisas os gentios procuram. Decerto vosso Pai celestial bem sabe que necessitais de todas estas coisas;

Mas, buscai primeiro o reino de Deus, e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas.

Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã, porque o dia de amanhã terá as suas preocupações próprias. Basta a cada dia o seu cuidado.”

Etelvaldo Vieira de Melo