COM O DEDO NO GATILHO

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É sabido que, para quem pretende levar a sério a atividade de cronista, um dos requisitos fundamentais é buscar sair, conhecer novas situações e pessoas. Como a rotina de vida de Eleutério, aspirante a cronista, envolve raras situações e raríssimas pessoas, ele corre o risco de sempre ficar falando o mesmo das mesmas coisas, mudando apenas um ou outro detalhe.
Ciente das responsabilidades para com seus amáveis leiturinos, fez ele recentemente uma viagem a passeio por dois países europeus, onde procurou arejar a mente e aumentar seu cabedal de conhecimentos. Ele tem certeza de que aquilo foi uma extravagância, tendo que raspar os fundos de suas pobres reservas, além de recorrer a um empréstimo consignado neste cenário brasileiro de juros estratosféricos. Mas ele pensou: - Não tem preço que possa pagar a satisfação de atender aos meus leitores, reais e fictícios.
Agora que retornou do passeio, responsável pela produção de nove crônicas, retoma a perigosa rotina de fazer sempre igual as mesmas coisas de sempre.
Hoje, por exemplo, saiu de casa para uma consulta médica. Há uns vinte dias que ele está sentindo um desconforto no dedo polegar da mão direita. Achou por bem procurar um ortopedista, já que dois dos atos mais aprazíveis de sua vida estavam sendo objetos de dor e sacrifício: jogar videogame e escrever.
Chegando ao hospital, no guichê de informações, quando a atendente perguntou sua idade, Eleutério falou: “- 71”. Aí, parece que ouviu ela dizer: “- Coitado!”. Eleutério quis saber: “- Coitado? Se foi isso que disse, tem razão”. “- Mas eu não falei nada disso” – falou a atendente. “Até penso que está bom demais você chegar a essa idade tão bem disposto.” “- Huummm...” – resmungou Eleutério.
Depois de se inscrever, passou nosso amigo pela triagem, para ver qual fitinha deveria colocar no punho: uma verde, uma amarela ou uma vermelha. A enfermeira mediu sua pressão, 14/8, e julgou que ele era merecedor da fitinha verde.
A consulta com o médico veio logo em seguida: Dr. André L. Portugal, muito atencioso e cuidadoso. Seu diagnóstico provisório, antes de encaminhar Eleutério para exames radiológicos, foi: - Você está com “dedo em gatilho”, “tenossinovite estenosante” – em linguagem técnica.
Quando ouviu aquilo, mesmo com o risco do doutor levar a mal, Eleutério falou:
- Mas logo “dedo em gatilho”, eu que não sou nenhum bolsominion e odeio arma de fogo, até mesmo em jogo de videogame?
Depois de tirar as radiografias, que nada acrescentaram à avaliação inicial, o doutor receitou o uso de uma órtese para polegar (uma munhequeira), além de uma injeção, que deveria ser aplicada na nádega.
Eleutério se lembrou de sua recente viagem a Portugal e de seu medo de ter que ir a uma farmácia e ter que tomar uma “pica no cu” (segundo vocabulário lusitano, o que não passa da injeção na nádega ou bunda, segundo a terminologia tupiniquim). Pensou:
- Têm razão os budistas com essa lei de causa e efeito. Foi só eu brincar com os portugueses, fazendo troça de seu vocabulário (cf. "Aos Trambolhões", crônica publicada em 07/07/2019), para que um doutor, aqui no Brasil, viesse me aplicar a lei do karma, de que você tem que pagar aquilo de errado que faz. Doutor André L. PORTUGAL resgatou a honra lusitana, fazendo com que eu, Eleutério, acabasse provando de meu próprio veneno, tendo que ir tomar a tal de “pica no cu”. “Maktub!”, tinha que acontecer – como diriam os árabes.
Etelvaldo Vieira de Melo

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