Leitores religiosos e mais ingênuos
evitariam “A igreja do Diabo” por temor ou por simples repulsa. Os descrentes,
na sua vez, esquivam-se do conto talvez por respeito próprio à sua tradição não
religiosa. Agora, os apologistas de Satã desejam mesmo é que essa obra seja
apagada da História de nossa Literatura.
Estamos diante duma obra-prima da
Literatura Universal, cuja personagem principal é a entidade arquetípica, real
para uns, mitológica para outros. O anjo caído, o anjo rebelde, tomado por
despeito, ódio, vingança e inveja: Lúcifer!
Algum monge divinamente inspirado da
ordem de São Bento teria testemunhado a história, deixando-a em manuscrito para
os homens comuns, caindo então aos olhos do leitor-narrador-escritor. O que
move a história é uma idéia extraordinária ocorrida ao anjo, durante suas
reflexões no inferno. Decide ele fundar uma Igreja Única e Global, enquanto se
combatem entre si as religiões. O plano nasce da clássica e totalitária
percepção diabólica de que tudo entre os seres é vaidade. Vanitas vanitatum et
omnia vanitas! Para o desafiador de Deus, as virtudes buscadas pelos homens têm
por motivo o orgulho. Pervertendo as virtudes e resumindo-as em um só vício, o
mirabolante levanta uma comparação entre elas e a vestimenta distintiva da
realeza. A capa – o manto de reis, rainhas, príncipes e princesas – traz na sua
essência o tecido e na forma a destacada franja. Esta última, naturalmente,
trata-se de guarnição, enfeite. No argumento satânico, a franja é algo que ao
mesmo tempo embeleza e esconde, tampa alguma verdade ou vergonha. Isto é, por
detrás das virtudes que se vê está escondida a Senhora Vaidade. Com base nessa
tese, e impiedoso com os pecadores, o pai da negação e do “moralismo mundano”
condena a todos negando qualquer possibilidade de salvação.
Quanto aos tecidos. Podemos traçar um
paralelo com os lugares onde se passa a história: o algodão, hipoalergênico,
com sua brancura e maciez simbolizaria o Céu; o veludo por sua exuberância,
propenso à irritabilidade e dupla possibilidade (pode ser ele fiado com algodão
ou seda) seria a vida na Terra; por fim a seda com seu brilho reluzente e sua
luxúria infernal “das províncias do abismo”.
Para o Diabo, um fiel modesto e sensato
que dá sua vida para salvar outras duas não passa de um misantropo fingindo
caridade. Os crentes, para ele, são invejosos; enquanto que as forças infernais
vestem-se de justa indignação. Ele goza de amor próprio diante de um Deus
vencido; os pobres fiéis não, esses se movem por vanglórias. O Diabo é
eloqüente, sedutor e deseja disputar o rebanho das almas até que sua igreja
seja a única. Ataca o livre arbítrio dos profetas e do reformador. Abala toda a
harmonia angélica. Pretende eliminar a variedade de religiões e doutrinas.
Trabalha negando a decência, o arrependimento, a culpa, a piedade e a
reconciliação, “cortando por toda a solidariedade humana”. Tudo pode ser
vendido e adulterado. O simples fato dum fiel arrumar-se para ir ao templo é,
na lógica diabólica, ostentação. Revolve-se o quadro gradual aristotélico dos
bons e maus hábitos.
Para concluir sua instituição, precisa
ele estabelecer uma Grande Ordem Nova e Insana das coisas, com a força das
multidões e legiões de seguidores. Ele mesmo se autodenomina Legião. Sua Igreja
é a instauração da barbárie. Que é a barbárie? Trata-se da reversão das
civilizações em selvas, os homens tornados animais irracionais em ambientes
inseguros, cercados de ruínas e abismos. Instaurada essa barbárie horrenda e
dolorosa, os demonizados então praticarão suas virtudes por detrás das
aparências pecaminosas e demoníacas. Aparências essas que são as franjas de
seda. O homem, seco por dentro, voltará a ter sede de Deus e de Civilização.
Após a sofrida experiência das tentações e reconquistados os bons hábitos,
necessário se faz banhá-los de humildade para superarmos as renovadas
estratégias do Diabo.
O bom escritor deve ser, antes de tudo,
um atento ouvidor das tradições, histórias clássicas e alheias, bem como um
colecionador de acontecimentos, fatos, lugares e tempos. Personagens e ações se
repetem e se atualizam. O rico repertório de citações do contador nos traz
saudades ao tempo em que nos empurra para a esperança.
Lopes al’Cançado
Rocha, o Cristiano.
3 comentários:
Dr
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