A GAROTA QUE QUERIA COMER MIOJO

 

Rosângela Sibele, 41 anos, é moradora de rua em São Paulo, mãe de 5 filhos e dependente de drogas. No dia 29 de setembro de 2021, ao mesmo tempo em que Luciano Hang, o ‘Véio da Havan’, fazia seu teatro junto à CPI da Covid, ela era presa em flagrante por furtar dois pacotes de miojo, uma Coca-Cola de 600 ml e um pacote de suco em pó da marca Tang. Os alimentos totalizaram R$21,69.

Ao pesquisar a vida pregressa de Rosângela, iremos notar que ela já havia sido condenada por furto em outras duas ocasiões. Na primeira, quando roubou 50 metros de fio (avaliados em R$600,00); na segunda, quando furtou dois desodorantes Monange (avaliados em R$19,40), além de gêneros alimentícios e de higiene (total de R$283,33). A segunda condenação se deu em 15 de junho de 2018, quando o mundo do esporte tinha os olhos voltados para a Rússia com o início da Copa do Mundo de Futebol, que seria vencida pela França.

Quando foi presa agora em setembro, a Defensoria Pública de São Paulo pediu para soltá-la, com base no princípio da insignificância: o fato de as mercadorias terem um valor irrisório e de Rosângela ter furtado para comer. No entanto, os pedidos foram negados tanto em primeira quanto em segunda instâncias pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP). Desembargadores alegaram que a mulher "ostenta passado desabonador" e "dupla reincidência específica" para justificar a manutenção da sua prisão.

Antes, o promotor Paulo Henrique Castex, em defesa da ordem e da segurança, havia pedido que a prisão em flagrante fosse convertida em preventiva, uma vez que "a custódia preventiva é uma forma eficaz de se assegurar a futura aplicação da pena, que será fatalmente frustrada caso, desde logo, não se prenda o agente". Ou seja: Rosângela é uma ameaça à ordem pública e seu lugar é atrás das grades pelo desplante de roubar miojo e suco em pó. E, de acordo com o artigo tal, parágrafo et cetera e tal, sendo a presa reincidente, não lhe cabe o direito à liberdade provisória.

Em 30 de setembro, enquanto Eduardo Bolsonaro fazia mais uma viagem de turismo pelo mundo à custa do dinheiro público, levando a reboque sua família (desta vez com destino a Dubai, nos Emirados Árabes, de onde iria postar fotos vestido de sheik), a juíza Luciana Menezes Scorza, do plantão Judiciário, que atendeu o pedido do Ministério Público para que a prisão flagrante fosse convertida em preventiva, aceitou os argumentos do promotor Paulo Henrique Castex.

Ela disse em sua sentença:

“Mesmo levando-se em conta os efeitos da crise sanitária, a medida é a mais adequada para garantir a ordem pública, porquanto, em liberdade, a indiciada a coloca em risco, agravando o quadro de instabilidade que há no país. O momento impõe maior rigor na custódia cautelar, pois a população está fragilizada no interior de suas residências, devendo ser protegidas pelos poderes públicos e pelo Poder Judiciário contra aqueles que, ao invés de se recolherem, vão às ruas com a finalidade única de delinquir” (grifos meus). Ou seja: Rosângela é uma delinquente de alta periculosidade, uma ameaça à segurança das indefesas pessoas de bem.

Palmas para a doutora Scorza, especialmente por responder tão prontamente aos reclames da Ordem e da Lei, notadamente num país onde os maiores delinquentes têm suas penas reduzidas ou anuladas em razão da morosidade da Justiça. Entre os políticos, por terem foro privilegiado, apenas 3% são efetivamente condenados, enquanto uma grande maioria tem prescritos os delitos pelos quais são acusados. Exemplos são muitos:  José Sarney, Aguinaldo Ribeiro, Fernando Collor, José Serra, Jader Barbalho, Eliseu Padilha... Talvez seja por isso que Collor gostava de ostentar uma camiseta onde estava escrito: “O Tempo é o Senhor da Razão”. Em Brasília, com o tempo, denúncias e acusações não dão em nada. Não será isso que levou Flávio Bolsonaro a imitar as gargalhadas de seu pai como reação ao relatório da CPI da Covid apresentada na quarta-feira, 20?

Impunidade não é o que acontece com a Justiça em São Paulo, rápida e eficiente para prender, julgar e condenar, notadamente as chamadas arraias miúdas, os peixes pequenos, os ladrões de galinhas. A prisão e a condenação de Rosângela são exemplos disso. Os três desembargadores do TJ, o promotor Paulo Henrique Castex e a juíza Luciana Menezes Scorza deveriam receber medalhas de Honra ao Mérito.

Em conversa com jornalistas, Rosângela contou que não queria ter pego os alimentos, mas o fez por estar “com muita fome”:

“Eu estava com muita fome e queria muito comer um miojo.”

Durante a entrevista, revelou que mora há dez anos nas ruas de São Paulo e que deseja tratar o vício em drogas para “ser gente”:

“Meu grande sonho é ser gente. Eu ainda não sei o que é isso, não sei o que é ser mãe, filha e irmã.”

Ser gente: este é o desafio para milhões de marginalizados num país de tanta riqueza e de tantas desigualdades. Cenas recentes mostram pessoas formando filas na Glória, Rio de Janeiro, em busca de restos de ossos de animais para matar a fome, enquanto, em Fortaleza, pessoas em situação de vulnerabilidade esperam - em frente a um supermercado de área nobre - um caminhão de lixo para procurar e coletar restos de alimentos. Este é um retrato do Brasil que deveria nos cobrir de vergonha.

Etelvaldo Vieira de Melo

3 comentários:

soares.heleno@gmail.com disse...

A Justiça... A Justiça! Por isso, eu me queimou, caro amigo. Sou crítico tenaz das forças que se aprimoram para tornar a impunidade vulgar e comum. Não deixo NUNCA de denunciar e me colocar como alvo dos defensores da injustiça. Um grande abraço. O texto é firme e direto. Seria ótimo se o enviasse para os exsecordianos
Peço sua licença para eu comoartilhá- lo com meu sindicato, meu Partido e outros. É até com amigos fora do Brasil

Anônimo disse...

Diante desta publicação, eu fico com uma dúvida enorme com a nossa justiça, gostaria de entender como aquele velho ditado está se aplicando aí: dois pesos e duas medidas ou um peso e duas medidas? Peço ajuda aos universitários.
Aloísio.

Julia disse...

👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻 Fico muito triste sabendo que existem tantas pessoas nessa situação.
Ótimo texto pai!

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