DIVAGAÇÃO NOTURNA



Uma noite como tantas outras: muito calor, a lua brilhando lá no meio do céu, estrelas esparsas, um cão que late, uma sirene que toca, conversas na casa vizinha... Uma noite como tantas outras!

0 dia também foi como tantos outros: o trabalho, as coisas rotineiras de sempre, quase as mesmas pessoas, tudo da mesma maneira, nada de diferente.

(Parece que a vida é aquela rotina vivida por Sísifo: estar sempre a empurrar uma enorme pedra até o alto de um morro e, quando quase chega ao fim, uma força estranha impele a pedra morro abaixo. E ele ia lá de novo empurrar a pedra, tentando alcançar o cimo do morro, mas em vão.)

Sinto-me assim, vivendo a rotina do dia a dia. O sonho é de chegar lá em cima, realizando plenamente meus projetos, mas vejo que estou sempre recomeçando, nunca chego a um fim, sinto-me sempre incompleto. Minha semana, por exemplo, acontece desta maneira: começo na segunda-feira, passo pela terça, chego à quarta, ultrapasso a quinta, tropeço na sexta... e caio nos braços do sábado e do domingo; depois, recomeço tudo de novo: segunda, terça, quarta...

Bom... hoje vi muita coisa que, ao fim, fica reduzida a nada; hoje estive com muitas pessoas, mas que passaram quase despercebidas. Assim como não dei atenção ao que acontecia, não tive curiosidade de olhar para as pessoas. Fui por demais simplista em não prestar atenção. Parecia desnecessário, supérfluo. Julguei secundário algo que poderia ser essencial. E, agora, fico lamentando.

(Parece até que estou dando crédito a Tântalo, aquele titã condenado a ficar dentro de uma lagoa, com o queixo ao nível da água. Sentia uma sede devoradora e não encontrava meio de saciá-la, pois, quando abaixava a cabeça, a água fugia, deixando o terreno sob os seus pés inteiramente seco; quando suspendia a cabeça novamente, a água voltava ao nível de seu queixo. Frondosas árvores carregadas de frutos, peras, romãs, maçãs e apetitosos figos abaixavam seus galhos, mas quando ele tentava agarrá-los, o vento empurrava os galhos para fora de seu alcance.)

E eu me pergunto: será que o objetivo de nossa felicidade está bem próximo de nós, mas, quando nos aproximamos, ele é afastado, arrancado? Não estarei agindo assim pelo descrédito para com o que me acontece na rotina do dia a dia, nas coisas simples, corriqueiras e banais? Não estaria Sísifo procedendo errado, julgando que o importante era chegar lá em cima do morro, não dando atenção ao caminho?

Hoje é uma noite como tantas outras: o calor... a lua... as estrelas... o cão... a sirene... as conversas na casa do vizinho...

O dia de hoje foi também como tantos outros. Mas bem que poderia ter sido diferente!

Etelvaldo Vieira de Melo

VIRGINAL ESCUMA (41) -

 


- Sentemo-nos, ninfa alvissareira (mente babilônica). Gostarias de jogar comigo o Xadrez antigamente sagrado, sob o olhar do cervo, ali, também cheio das sábias habilidades? Arte e engenho na Torre. Movimento roque defensiva (amostrando mãos em cima da Torre erguida, basta florada). Espio o estranho expiando-me lançar o dado. Um coup de dés. Ei-lo, tremendo vivo real num sonho em que tento ganhar alguma coisa indizível. Ou seja, A Coisa. O fim da Partida. Viso ao inexplicável inexorável porvir vindo de surpresa do tempo passado. Milêniosalinhada ao chão, deitada à espera dele, entoo - pra me bendizer - a Cantiga que a Gente Canta. Depois, Os Amores que a Gente Quer. Inútil o inominável entenderes, ledor racional, incrédulo parceiro. Nossa situação desarrazoada, vice-versa versa-vice ziguezague. Digamos, caro amigo: Trata-se do impossível na presente narrativa. Melhor, representá-lo-ei vazio lume vago. Entende- me vertical: - Concebes porventura aquele buraco fundo onde todas as palavras serão logo enterradas por mim, mulher prolixa em lendas ao pé da fonte ou na ribeira? Sim? Mais ou menos isso. Súbito, o ignoto astronauta agarra-me a cintura. Despe-me a camisa. Solta, andando o Peão, passeio o ritual da antiquíssima Tília, durante o Culto à Fecundidade. Ulalá! Curvo-me, sempre ávida do desconhecido, obstáculos. Frouxa da mais voluptuosa ânsia, após irei dizer à mãe e ao pai: - Da gleba vencedora, vou varrer vossa casa, lavar vossa roupa. Abandonados sobre relva amarfanhada, aqui jazz harpa. Saltério. Cravo.

Xeque-mate.

Graça Rios


LEMBRANDO EDUARDO

 

Embora entusiasta do esporte, nunca fui bom em pescaria. Costumava fisgar galhos de árvores, pessoas por perto, outras linhas de pescadores, mas peixe mesmo que era bom, nada. Isso não arrefecia meu entusiasmo. Pelo contrário. Assim é que, quando ia pescar com Eduardo, Baiano, senhor Geraldo, dona Diva e seus filhos Bá e Patrícia, lá na lagoa da Petrobras, mal o carro pilotado por dona Diva parava, já eu ia preparando as varas e os anzóis, logo me acomodando num pesqueiro qualquer.

O Eduardo, não. Descia do carro e, calmamente, por cerca de meia a uma hora, ficava observando atentamente a lagoa, querendo conhecer o melhor local para pescar. Colocava a mão no queixo e, ensimesmado, perdia-se em devaneios. Depois, balançava a cabeça e a gente, lá de longe, sabia que chegara a uma conclusão. Mas não era a definitiva, pois precisava agora refletir e analisar, para definir a quantidade de linha, o tamanho da chumbada e o anzol a serem usados. E isso lhe tomava mais de meia hora. Definidos esses preliminares, gastava ele outro tempo para os preparativos finais. E, quando dizia a si mesmo “É agora!”, alguém do grupo gritava: “Eduardo, ajunte seus apetrechos que já estamos indo embora”.

Doce lembrança. Nesses tempos de massificação pela Internet, sobretudo através de suas redes sociais, as pessoas não se dão ao trabalho de refletir sobre nada, recebem tudo pronto e mastigado, só têm o trabalho de “engolir”, rolando os dedos. Gostaria muito que tivessem essa disposição do Eduardo. Sem pressa, calmamente, com muito cuidado, refletir e buscar entender por conta própria as coisas que acontecem, compreender tudo. Cada um ter sua vida nas mãos, conhecê-la, saber avaliar-lhe a consistência, tal qual o vendedor de feira que sabe determinar o peso de uma mercadoria, cortando-a na medida certa, usando uma balança só para acalmar o comprador desconfiado.

Já dizia Aristóteles que a vida sem reflexão não merece ser vivida. Eduardo, você anda fazendo muita falta nesses tempos modernos, onde o ato de refletir foi substituído pelo de copiar e colar, com as pessoas deixando de ter ideias próprias. Como bem diz o compositor: “A felicidade foi embora, deixando a saudade morando no meu peito. O pensamento parece uma coisa à toa. Mas como é que a gente voa quando começa a pensar?”.

É isso. A infelicidade das pessoas hoje, mais do que por qualquer outra razão, decorre de sua incapacidade de refletir, de tomar suas próprias decisões, de voar, ser livre.

Etelvaldo Vieira de Melo


SIMULACRO DE UMA SOLIDÃO (39)


 

Segue-me: Há uma Tília cordata, árvore aromática, no meio do caminho. Bem feita de corpo, possui tronco teúdo bojudos seios. Um aroma noar desvia-lhe folhas amarelas até este limbo dourado. Conheço a força mágica da Natureza. Possuo rosto moreno-pérola, grandes olhos dulcorosos, fronte emoldurada por cabelos crespos. Meu nome, a saber? Lediça. Talvez creias apenas dele prenome limoso escorregadio. Deslize. Bispo movendo-se por todas as casas talvez lhe anotes acepção iridescente entre dois termos frutuosos por abrupta associação. Discuto contigo? Pois não. Talvez o releias como salto alto súbito de Rei capturado. Algo assim, tapando peneira. Perguntas-te, ainda, absorto em si menor: - Essa linguagem figurada existe? Resvalaria, feminina, pelo espaço repleto de furos, brechas, renda em arabesco? Mulher é prenda renda: desenho formoso macramé. Miosótis (grego: olho de rato). Filigrana. Vagonite com fita e pedra. Entanto, puxado o fio, some. Imagem. Fina forma, beleza, conjunto. Poderia com cordas amordaçá-la, à figura, utilizando práxis peças? Ah, ah, brinca a Pitonisa. Pensando bem, já estás jogado para a casa adjacente: - Lediça, sinônimo, Sacerdotisa. Oráculo que se adivinha, junto ao destino das pessoas, leitura dos astros. Dos vegetais. Das vísceras de animais mortos. Prendo-a nesta armadilha de braços e pernas? Não, feiticeira. Antes que me desenhes peça adversária, retornemos ao princípio não dito. Descrevo-me, ante teus horizontais olhos, bem talhada, louvada pelos povos da aldeia. Quando fui virgem, corri ao campo por segar flores. E daí? Daí, um moço de teu igual talhe e, quem sabe, de idêntico intuito diagonal, nota-me perfumada entre a(r)madas magnólias, descalças azaleias, plenas centáureas. Encorajado Rei, extrai do peito couraça, arco, aljava. Aproxima-se de ...

Graça Rios

DAR AS MÃOS, PEGAR COM AS MÃOS

 

Vivemos uma época de individualismo exacerbado, concorda? Dizem que não podemos confiar nem em nossos pais, é mesmo? Os pais também não podem confiar nos filhos, certo? Você assistiu, pela TV, àquela reportagem horrorosa de um filho matando os próprios pais. As pessoas não se aproximam da gente sem segundas intenções, você pensa.

Não sou eu quem vai dizer que está errado pensar assim. Confesso que, às vezes, também sou atropelado pela descrença na capacidade de convivência do ser humano. Porém, vez por outra, lembro-me de um fato - que pode ser estória, ou de uma estória - que pode ter sido um fato. Com ele, tudo seria diferente...

Dois amigos, numa joalheria, examinavam pedras de grande valor. Um deles, notando uma sem brilho nem aparência, perguntou:

- Por que está aqui esta pedra, entre tantas de valor? Ela não tem atração alguma...

Sem responder, o outro a ocultou, um instante, na mão. Momentos depois, com surpresa, o amigo viu que a pedra se transfigurara e brilhava esplendidamente, todas as cores do arco-íris nela resplandeciam.

- É opala – explicou o amigo – uma dessas pedras que se chamam simpáticas, porque o calor da mão irradia para elas toda a vida que pareciam não ter.

Existe uma corrente filosófica que diz serem as outras pessoas o inferno, que o outro me incomoda, nem que seja ao roubar o oxigênio que poderia ser meu. Existem pessoas que pensam assim: - Quanto mais convivo com os seres humanos, mais gosto dos animais e das plantas! Deixando de lado tanto pessimismo, é preciso considerar que “homem algum é uma ilha”, que “só existo na medida em que existo para o outro”, que, sozinho, nada sou, que viver é com-viver, que ser-com-os-outros é uma das principais dimensões da vida.

Então, precisamos da convivência, precisamos aprender a nos relacionar com os outros, compartilhando nossas experiências e cultivando as amizades.

Entre as pessoas de sua convivência, muitas logo mostram seu valor. São pessoas extrovertidas, comunicativas, fáceis de relacionar, estão sempre se destacando entre as outras, todo mundo conhece. Mas também existem aquelas aparentemente apagadas, sem brilho próprio, caladas, tímidas, desinteressantes. Elas são as muitas pessoas-opalas com as quais você convive. Por favor, não fique na análise superficial de considerá-las sem brilho, aparência, atração! Se você se aproximar, pegá-las com as mãos, aquecê-las com o calor da atenção e empatia, aí elas irão mostrar todo o seu imenso valor, toda a sua beleza, a beleza sutil e misteriosa de uma opala.

Etelvaldo Vieira de Melo


GRETA & GARBO

 

Ruga ao posar intimidades.
Star no camarim
luxa lux memória.

Alwais be in neon high,
oh, Dalisca.
Bisca isca cisca
tom mignon.

Made in China, traz
éclair co strass
atrás.
Graça Rios

QUANDO A CHINA ARREBENTOU A DICOTOMIA ENTRE POBRES E RICOS


Existem palavras arrebatadoras. Dicotomia é uma delas. Pelo menos para o jovem Dalírio, quando a conheceu. Foi amor à primeira vista (melhor dizendo: primeira audição).

Nas conversas, nos debates acadêmicos, lá estava ele sempre procurando um jeito de encaixar aquela palavra mágica. “Não podemos estabelecer essa dicotomia”, dizia ele a propósito de uma fala qualquer. E sorria, satisfeito com seu inteligente achado.

Embora inusitada na pronúncia, a dicotomia sempre se fez presente na história da humanidade. Tudo começou nos tempos de Adão e Eva, com o dilema de comer ou não comer o fruto proibido e suas implicações: liberdade e pecado, vida e morte, ignorância e saber, inferno e céu.

E assim caminhou a humanidade, nessa perene luta entre as forças do bem e do mal, com o cinema explorando ad nauseam esse inesgotável filão. Até chegar o momento em que, aparentemente, algo foi quebrado, quando os muros de Berlim caíram e o comunismo sofreu aquela derrocada fatal (só se recuperando parcialmente agora, com os tresloucados de extrema-direita o elegendo como inimigo infernal, terror das famílias de bem).

Caiu, então, o maniqueísmo da luta entre o bem e o mal, simbolizado no confronto entre U.S.A. e URSS, Capitalismo X Comunismo. Os roteiristas dos filmes reavaliaram seus conceitos, buscando novos mocinhos e novos vilões para um mundo não mais dicotômico e, sim, globalizado.

Apesar desse tsunami ideológico, uma dicotomia parecia inabalável: aquela que separava os ricos dos pobres, a elite da plebe, as nações desenvolvidas das nações subdesenvolvidas ou – usando de um eufemismo – em vias de desenvolvimento.

Paradoxo dos paradoxos, o capitalismo nos países periféricos era para uma minoria; daí, ser chamado capitalismo selvagem. A grande massa era tratada como se fosse um cachorro (vira-lata) frente a uma máquina de assar frango. Só podia ficar olhando; para ela, era ver a ostentação dos poderosos, a riqueza que desfilava pelos comerciais e pelas novelas da TV. Porque, para o capitalismo, é importante você ter e, mais importante, você ter o que o outro deseja ter, mas não tem.

Cuidavam os países pobres de produzir bens para exportação e amortizar suas ditas e tidas impagáveis dívidas externas.

Esse cenário foi mudando, gradativamente, com o aumento da população, digo, da exportação de um ex-comunista de marca maior, referência mítica de tantos e tantos revolucionários tupiniquins: a China!

Gradativamente, a China foi inundando o mercado mundial com bugigangas de toda espécie, preço, qualidade e gosto. E aí surgiram as lojas de 1 e 99, os camelódromos, os shoppings populares, todos abarrotados de ávidos consumidores.

Houve gente que torceu o nariz para essas possibilidades de consumo para as populações do baixo estrato social. No fundo, eram pessoas elitistas, que queriam negar ao zé povinho aquele que é o bem maior do capitalismo: o de consumir! (Estou me referindo aos que ficam do lado de cá do rio, pois sei que, para os que estão do lado de lá, o bem maior é acumular capital.) Esses mesmos elitistas torciam mais o nariz quando viam os aeroportos sendo frequentados por pessoas que, até ontem mesmo, nunca tinham viajado de avião. C’est la vie!

Gostaria que um sociólogo de plantão tivesse feito um estudo a respeito do assunto. Uma das inferências desse estudo seria a de constatar que o índice de violência no país seria mil vezes pior se não houvesse essas lojas de 1 e 99, para amortizar o sentimento de revolta latente diante de um quadro de extrema desigualdade social, retrato do Brasil do início do segundo milênio.

Foi assim que a China arrebentou com a dicotomia entre ricos e pobres (*), em se tratando de consumo, mesmo que o produto de um tenha sido de marca e do outro, pirata. No mais, tivemos que nos conformar com aquela frase ostentada no portal de uma loja de importados:

DEUS CRIOU O CÉU E A TERRA; A CHINA FEZ O RESTO

(*) Por enquanto, pois o governo, a pretexto de igualar a concorrência, está querendo taxar importados até $50 US, até agora isentos. Assim, ele vai arrecadar mais (os atravessadores brasileiros também). Eu vou ficar chupando o dedo, enquanto a dicotomia entre pobres e ricos vai ser de novo estabelecida. Eita Brasil difícil! Antigamente, nos tempos delfinéticos, falavam que era preciso deixar o bolo crescer para distribuir entre todos. Agora, que a China resolveu produzir um bolo de 1 e 99, estão querendo tirá-lo da boca do pobre coitado do pobre!

Etelvaldo Vieira de Melo


AMAR CURA (38)

 
Imagem: Pinterest

Desconfie das efemérides

nas fotos de família.

Hasta la vista, bebé:

Toma el hábito.

Pieles en convento.

Graça Rios