Existem palavras arrebatadoras.
Dicotomia é uma delas. Pelo menos para o jovem Dalírio, quando a conheceu. Foi
amor à primeira vista (melhor dizendo: primeira audição).
Nas conversas, nos debates acadêmicos,
lá estava ele sempre procurando um jeito de encaixar aquela palavra mágica.
“Não podemos estabelecer essa dicotomia”, dizia ele a propósito de uma fala
qualquer. E sorria, satisfeito com seu inteligente achado.
Embora inusitada na pronúncia, a
dicotomia sempre se fez presente na história da humanidade. Tudo começou nos
tempos de Adão e Eva, com o dilema de comer ou não comer o fruto proibido e
suas implicações: liberdade e pecado, vida e morte, ignorância e saber, inferno
e céu.
E assim caminhou a humanidade, nessa
perene luta entre as forças do bem e do mal, com o cinema explorando ad nauseam esse inesgotável filão. Até chegar o momento em que,
aparentemente, algo foi quebrado, quando os muros de Berlim caíram e o
comunismo sofreu aquela derrocada fatal (só se recuperando parcialmente agora,
com os tresloucados de extrema-direita o elegendo como inimigo infernal, terror
das famílias de bem).
Caiu, então, o maniqueísmo da luta entre
o bem e o mal, simbolizado no confronto entre U.S.A. e URSS, Capitalismo X
Comunismo. Os roteiristas dos filmes reavaliaram seus conceitos, buscando novos
mocinhos e novos vilões para um mundo não mais dicotômico e, sim, globalizado.
Apesar desse tsunami ideológico, uma
dicotomia parecia inabalável: aquela que separava os ricos dos pobres, a elite
da plebe, as nações desenvolvidas das nações subdesenvolvidas ou – usando de um
eufemismo – em vias de desenvolvimento.
Paradoxo dos paradoxos, o capitalismo
nos países periféricos era para uma minoria; daí, ser chamado capitalismo
selvagem. A grande massa era tratada como se fosse um cachorro (vira-lata)
frente a uma máquina de assar frango. Só podia ficar olhando; para ela, era ver
a ostentação dos poderosos, a riqueza que desfilava pelos comerciais e pelas
novelas da TV. Porque, para o capitalismo, é importante você ter e, mais importante,
você ter o que o outro deseja ter, mas não tem.
Cuidavam os países pobres de produzir
bens para exportação e amortizar suas ditas e tidas impagáveis dívidas
externas.
Esse cenário foi mudando,
gradativamente, com o aumento da população, digo, da exportação de um
ex-comunista de marca maior, referência mítica de tantos e tantos
revolucionários tupiniquins: a China!
Gradativamente, a China foi inundando o
mercado mundial com bugigangas de toda espécie, preço, qualidade e gosto. E aí
surgiram as lojas de 1 e 99, os camelódromos, os shoppings populares, todos
abarrotados de ávidos consumidores.
Houve gente que torceu o nariz para
essas possibilidades de consumo para as populações do baixo estrato social. No
fundo, eram pessoas elitistas, que queriam negar ao zé povinho aquele que é o
bem maior do capitalismo: o de consumir! (Estou me referindo aos que ficam do
lado de cá do rio, pois sei que, para os que estão do lado de lá, o bem maior é
acumular capital.) Esses mesmos elitistas torciam
mais o nariz quando viam os aeroportos sendo frequentados por pessoas que, até
ontem mesmo, nunca tinham viajado de avião. C’est la vie!
Gostaria que um sociólogo de plantão
tivesse feito um estudo a respeito do assunto. Uma das inferências desse estudo
seria a de constatar que o índice de violência no país seria mil vezes pior se
não houvesse essas lojas de 1 e 99, para amortizar o sentimento de revolta
latente diante de um quadro de extrema desigualdade social, retrato do Brasil
do início do segundo milênio.
Foi assim que a China arrebentou com a
dicotomia entre ricos e pobres (*), em se tratando de consumo, mesmo que o
produto de um tenha sido de marca e do outro, pirata. No mais, tivemos que nos
conformar com aquela frase ostentada no portal de uma loja de importados:
DEUS CRIOU O CÉU E A TERRA; A CHINA FEZ O RESTO
(*) Por enquanto, pois o governo, a pretexto de igualar a concorrência, está querendo taxar importados até $50 US, até agora isentos. Assim, ele vai arrecadar mais (os atravessadores brasileiros também). Eu vou ficar chupando o dedo, enquanto a dicotomia entre pobres e ricos vai ser de novo estabelecida. Eita Brasil difícil! Antigamente, nos tempos delfinéticos, falavam que era preciso deixar o bolo crescer para distribuir entre todos. Agora, que a China resolveu produzir um bolo de 1 e 99, estão querendo tirá-lo da boca do pobre coitado do pobre!
Etelvaldo Vieira de
Melo
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