Veja você como o ‘pre-conceito’ pode fazer mal para quem o
pratica.
Em tempos mais que pretéritos, estava Eleutério no ponto do
ônibus, sentado no banquinho de espera de uma guarita. Em determinado momento,
viu se aproximar uma mulher maquiada com exagero e fumando, que logo lhe
perguntou:
- Está esperando o ônibus?
Deu vontade de dizer: - Não, estou esperando o navio, que vai
passar daqui a pouco.
- Você paga passagem? – ela adiantou, para deixar Eleutério mais
aborrecido.
Ante sua recusa, ela explicou:
- Estou indo fazer uma entrevista de emprego. A situação pro meu
lado está difícil, desempregada e sem dinheiro até para a passagem.
Sentimentos contraditórios tomaram conta de nosso amigo: ficou penalizado,
tomado daquela compaixão dalaimática; também se sentiu ressentido, já que a
moça estava muito maquiada e fumando (“Para cigarro e cosméticos, ela arranja
dinheiro” – chegou a pensar).
Prevalecendo o sentimento de compaixão, Eleutério enfiou a mão no
bolso para retirar um trocado. Para sua surpresa, havia esquecido o dinheiro em
casa.
- Você desculpa, mas estou vendo que estou sem dinheiro – falou. –
Tenho que ir lá em casa buscar.
Enquanto caminhava, Eleu (estou com preguiça de escrever o
nome todo) ia pensando:
- O drama da mulher em questão, correndo atrás de emprego, é um
exemplo do caos em que o país está mergulhado: enquanto alastra o desemprego,
com a fome batendo à porta de muitos lares, vemos políticos, sem vergonha na
cara, carregando malas de dinheiro roubado; magistrados, também sem vergonha na
cara, nadando em salários e penduricalhos imorais e ilegais; presidente,
desprovido de vergonha na cara, comprando votos de congressistas para não ser
cassado. Esse é um quadro deprimente que afronta a nossa vergonha na cara.
Eleu foi até em casa, pegou o dinheiro e voltou para o ponto. A
mulher ainda estava lá, disse que o ônibus não havia passado (estaria esperando
o trocado?). Eleutério (a disposição voltou) deu-lhe a metade do valor da
passagem, pedindo que ela desse um jeito de conseguir o restante.
Pensa que foi maldade de Eleutério? Ele pensa que agiu assim
porque reprovava o fato dela estar fumando, além de usar uma maquiagem muito
carregada.
Quando veio o ônibus, a mulher não se levantou, permaneceu sentada
no banco. Eleutério achou estranho. Aquilo lhe proporcionou uma derradeira e
dramática reflexão:
- Está vendo como você é uma pessoa mesquinha, Eleutério? Por
causa de sua sovinice e de seu falso moralismo, alguém está perdendo o emprego.
Por que não lhe deu todo o dinheiro da passagem? Não vê que o fato dela estar
fumando se deve à sua ansiedade e nervosismo? Não percebe que a maquiagem
carregada é para causar boa impressão na entrevista?
Eleutério sabia, com tanta consideração e reflexão, algum trocado
ia sobrar pra ele. No fim, ficou com sentimento de culpa: impediu uma menina de
conseguir um emprego. É isso que dá ter vergonha na cara. Mas ele não lamenta
ser assim, já que vergonha na cara é uma qualidade de caráter e que anda
fazendo muita falta no Brasil.
Já em tempos presentes, vejo que essa história ainda contém
considerações pertinentes. Nas suas relações com os outros, as pessoas ainda se
armam de preconceitos, de pré-juízos. Com isso, o que conta é o que a própria pessoa
quer, e não a realidade em si; daí, ela não muda, continua sempre a mesma, pois
nada aprende com os fatos e a própria vida. Já nossos políticos conseguem a
façanha de se tornarem cada vez piores, pois perderam de vez a vergonha de
mostrarem o que são. O que fez Millôr Fernandes suspeitar: “Deve haver,
escondida nos subterrâneos do Congresso, uma escola de malandragens, golpes,
perfídias e corrupção. Não é possível que tantos congressistas já nasçam com
tanto nourrau”. Cruz credo!
Etelvaldo Vieira de Melo
1 comentários:
O oposto da bondade não é necessariamente o mal, a maldade, mas sim o entorpecimento. É o momento em que ficamos entorpecidos, indiferentes, insensíveis, desconectados uns dos outros. O momento em que paramos de sentir, na própria pele, a história que o outro está vivendo, perto de nós ou em outra parte do mundo. Isso eu acho muito perigoso. Já viu o entorpecimento de muitos, ao genocídio em Gaza?
Nesse momento sua escrita faz a diferença, ela abre algum buraco nessa PAREDE DE ENTORPECIMENTO, que foi erguida ao nosso redor!
Obrigada pelo texto!
Ellen Pietra
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