CABRA-CEGA


Imagem: so-brincadeiras.blogspot.com.br

Lá vem a cabra-cega
andando pela casa.
Corre, menino, corre,
cria asa.

Lá vem a cabra-cega
com seus olhos de morta.
Corre, menino, esconde
atrás da porta.

Lá vem a cabra-cega
em busca de um abraço.
Foge, menino, foge
desse laço.

PARA A CHINA E PARA O MUNDO: CHEGA DE MINÉRIOS. EU QUERO EXPORTAR IDEIAS!


Nesta longa estrada da vida, não pense que vou correndo; ando devagar, porque já tive pressa. Andando devagar, pude perceber o que dizia um cartaz afixado na vitrine de uma loja de importados: “Deus criou o céu e a terra; a China fez o resto”. Por causa de meu retardo mental, na hora, achei aquilo engraçado; depois, fiquei muito irritado, pois julguei que os chineses estavam extrapolando em arrogância. Pensei que já estava passando da hora de inventar algo exportável, além do indefectível minério de ferro. Foi hoje que tive aquela iluminação repentina e que os estrangeiristas chamam de insight. Para traduzir essa minha ideia, faz-se necessário, primeiro, descrever três situações de vida. Todo mundo sabe: existe muita coisa que pode incomodar a gente, causando contrariedade e desgosto. Como as pessoas ainda acham que esse é o país do futebol, pode ser que, pra muitos, uma ginga de corpo e um drible sejam a solução; para outros, não tem como evitar o choque e o sofrimento. Em geral, esses outros acontecem quando a partida caminha para o final, o cansaço começa a tomar conta e as pernas já não aguentam correr como antes. A primeira situação de vida a considerar: uma espécie de sofrimento de natureza psicológica. Ela serve de alerta, dizendo que a vida já não é feita só de sorrisos. Já aconteceu com você? Uma garota que, tempos atrás, manteria uma razoável distância de sua pessoa, de repente, aproxima-se toda descuidada e com uma conversa cheia de intimidades. Você se assusta, pergunta para si mesmo o que está sucedendo, qual a razão daquela chuva em sua horta, imagina que tirou, sem se dar conta, a sorte grande da loteria. A princípio, fica todo envaidecido, mas logo vai perceber, amargamente, que havia se tornado um cão que ladra, rosna, ameaça atacar, mas não morde, e aquela menina esperta estava sabendo muito bem disso. Só fica faltando a garota afagar sua cabeça e você abanar o rabinho. Você, que ainda se julga tão macho, poderá não querer entregar os pontos, resiste bravamente. Nesse caso, é bom que tenha sempre em mãos uma quantia em dinheiro: existem meninas que aceitam dizer que você é o máximo a troco de uma bonificação financeira. Mas não pense que irá conseguir maiores intimidades, nem pense em se aproximar de uma farmácia onde estão à venda aqueles comprimidos que prometem ressuscitar defuntos. Essas garotas são doutoradas em enganar trouxas. Depois, você se lembra do Modesto Pinto? Foi tomar uns comprimidinhos daqueles e partiu dessa pra melhor. Esse trauma psicológico de descobrir que já não mais desperta instintos libidinosos, repito, representa a primeira situação de vida a motivar o meu invento. A segunda situação é outra coisa desagradável que acontece quando o jogo está bem adiantado: você levar um tombo e cair de forma desastrada, tal como sucedeu com Edolino Galvão. Ele estava indo em direção à sua casa, carregando umas comprinhas numa sacola. Caminhava pela margem da avenida principal do bairro, no sentido contrário dos veículos. No ponto em que havia uma baixada, resolveu ir pelo passeio, nas proximidades de um bar. Duas pessoas, que aparentavam ter tomado umas e outras, conversavam no meio do passeio. Edolino desviou para a direita, mas não viu uma enorme canaleta ali. O que sucedeu é que ele pisou em falso e se esparramou todo pelo cimentado. Quando uma pessoa jovem cai, pode até mesmo ser engraçado, os programas de TV exploram muito isso; quando se trata de uma pessoa mais idosa, o tombo vira motivo de preocupação. Quando fiquei sabendo o que havia ocorrido com Edolino, tratei de ligar para a Prefeitura, registrando uma reclamação. Outras pessoas poderiam sofrer o mesmo acidente, aquela canaleta exigia uma grade. Os passeios da avenida também estão todos esburacados. Foi então que me acorreu a lembrança daquele ditado: se ficar, o bicho pega; se correr, o bicho come. Se ando na avenida, corro o risco de ser atropelado; se vou pelo passeio, corro o risco de pisar num buraco e ficar todo esfolado. Como dizia um vizinho: está complicado. A propósito, ando muito preocupado com esse vizinho e amigo: ele arrumou uma dor nas escadeiras que não tem jeito de sarar: já foi ao médico, fez exames, chapas, tomou injeção, fez fisioterapia, me falou que o médico disse que ele está com uma inflamação no nervo asiático, falou um tanto de nome complicado, mas resolver o problema dele que é bom mesmo, nada. Trate de melhorar logo, amigo, pois o seu bom humor me faz falta. Sem ele, fica mais difícil tocar em frente. A terceira situação constrangedora que passamos na vida é a de ser assaltado. Osvaldo Faspalha já experimentou isso por treze vezes; doze, a bem da verdade, já que um dos objetos roubados lhe foi devolvido, um relógio, que o ladrão reconheceu tratar-se de uma porcaria. Foi juntando as experiências de Modesto Pinto, Edolino Galvão e Osvaldo Faspalha, somadas ao desgaste que o tempo provoca na aparência das pessoas, que tive a ideia de uma nova invenção: o espelhoshop® ou mirrorshop®. Na portaria do edifício onde estou fazendo tratamento dentário existe um enorme espelho, tomando conta de toda a parede lateral. Enquanto aguardo o elevador, ocasionalmente olho para ele e, geralmente, sinto aumentar o meu estado de depressão. Aliás, minha autoestima vai diminuindo toda vez que faço confronto com um espelho. Pensei: por que não disponibilizar para as pessoas um sensor (microchip), capaz de fazer uma leitura de suas fisionomias quando se olham num espelho? Os dados coletados são, imediatamente, convertidos e as imperfeições corrigidas; a imagem refletida atinge 98% de melhoria. Assim, as pessoas vão se ver bonitas e atraentes. Muitos podem alegar que já existem as plásticas, os botox e os photoshops. Sei disso, mas também sei que tais produtos são caros, proibitivos para quem mal consegue frequentar uma loja de R$1,99. Mas que não se assustem os capitalistas: o novo visual frente ao espelho será possível somente para aqueles que fizerem o implante do tal microchip (mirrorshop®) na orelha, pagando módicos R$39,99. O refil, com 12 meses de vida útil, sairá ao preço de R$19,99. Quando esse novo produto for comercializado, o índice de satisfação das pessoas estará lá em cima, mesmo que as aparências verdadeiras estejam lá em baixo. Só mais uma coisa: aqueles que se sentirem incapacitados, financeiramente, de adquirir o mirrorshop® poderão se inscrever num programa de bolsas do governo. Será apenas mais uma, em meio a centenas de outras, e o programa poderá se chamar “Meu espelho, minha alegria”. Aí, então, estaremos fazendo jus ao slogan: sem medo de ser feliz.
PS: Como os chineses são muito parecidos uns com os outros (cara de um, focinho do outro), tenho minhas dúvidas que eles venham a desenvolver esse projeto. Se eu não tivesse queimado quase todos meus neurônios em jogos de videogame, era hora de me arriscar num curso de eletrônica.
Etelvaldo Vieira de Melo

   

OS INSTRUMENTOS


Imagem: www.mestremarceneiro.com.br
Em certa marcenaria,
instrumentos discutiam                             
qual deles era o melhor
e a esse rei requeriam.

Iniciando a assembleia,
descartaram o martelo,
pois barulho ele fazia
batendo como um cutelo.

O martelo, por sua vez,
mandou cair fora a lixa,
pois era muito ranhenta
criando, com isso, a rixa.

Também foi muito infeliz
o pobre do parafuso,
pois dava voltas e voltas,
tornando tudo confuso.

Abaixo o senhor serrote
que arranha a discussão,
com suas idas e vindas
na maior amolação.

Nisso, entra o marceneiro
e se põe a trabalhar
sem que os defeitos de todos
lhe fossem prejudicar.

Enfim, se acaba o concerto
e de um tronco sem formato
nasce um móvel novo e caro
para todos um belo ornato.

Vai-se embora o marceneiro,
mas fica escrita a sentença:
muito vale cada um
com seu talento e pertença.

Nenhum de nós é perfeito,
mas temos nossos valores:
julgar o defeito alheio
retira do mundo as cores.




PALAVRAS QUE MORDEM, ARRANHAM, MACHUCAM



É preciso ter cuidado com as palavras, pois elas podem nos ocasionar várias espécies de dissabores. Como muito bem dizia Belchior, após se apresentar como um rapaz latino-americano: “as palavras são navalhas”.

Goiabeiras é um lugarejo que se esconde lá pelo interior do sertão. É lá onde moram os irmãos Lindomar e Orla Marina. Tais nomes se devem ao fato do pai, José Arrebola, em certa ocasião da vida, ter conhecido o mar e quis registrar, para seus conterrâneos e para a posteridade, o encantamento que experimentou. Todos do vilarejo sabiam dessa sua viagem extraordinária e não se cansavam de ouvir a descrição daquela imensidão de água, areias, do rugido das ondas. Tudo isso maravilhava as pessoas, ainda mais quando ouviam a descrição de que toda aquela água era salgada! Como isso é possível? – perguntavam, desnorteadas diante do mistério.

Naquela manhã, dona Muriquinha Mijurim, professora da turma do terceiro ano da única escola local, passou uma reprimenda em Orla Marina, logo que os alunos se acomodaram em suas carteiras:
           
       - Onde já se viu tanta sujeira, Orlinha? Veja suas mãos e suas unhas como estão. Suas unhas parecem que estão de luto, de tão sujas!
            
        - Não se incomode, prefessora, amanhã elas vai está limpinhas, só a senhora veno. Hoje eu vou ajudá minha mãe amassá goiaba pra fazê doce. Nóis stá cheio de encomenda de goiabada.

Dona Muriquinha sentiu um nó na garganta e que foi descendo, lentamente, para seu estômago. Pensou: “E eu que aprecio tanto a goiabada de dona Jovelina!”

Nessas mesmas horas, já na turma do sétimo ano, Lindomar estava sendo humilhado pela sua professora, Santinha dos Santos. No dia anterior, ele havia entregue uma redação em que descrevia o meio rural. Para torná-la mais atraente, teve a ideia de colar uma passagem extraída do Almanaque Biotônico Fontoura. Ela foi transcrita assim: “Um fazendeiro tinha um bezerro e a mãe do fazendeiro era também o pai do bezerro.”

Santinha dos Santos já havia ultrapassado o Cabo da Boa Esperança e se aproximava, perigosamente, do Cabo das Tormentas. Seu corpo virgem estava perdendo o frescor da juventude, vez por outra sentia subir lá de baixo o calor de um vulcão prestes a explodir. Estava disposta a abrir mão de todos os santos do nome e entregaria sua alma para a danação, desde que um homem, tal qual soldado dos bombeiros, viesse até ela e jogasse uma mangueira de água sobre seu corpo em ardência.

Santinha estava assim, com os nervos à flor da pele, qualquer coisinha a irritava. Agora mesmo vem esse Lindomar, mangando com seus pais, ela que era filha dos únicos fazendeiros da região! Por isso não teve dó ou piedade: aplicou-lhe um zero e tratou de humilhá-lo o máximo perante os colegas. Escreveu no quadro a passagem que lhe havia despertado tanto furor.

Lindomar, que era muito tímido e tinha o rosto coberto de espinhas, ficou vermelho como um pimentão maduro. Ele foi salvo pelo amigo Prospício que, ouvindo o destempero da professora, levantou a mão para dizer:
           
      - Professora, eu estava na casa de Lindomar e vi o almanaque de onde ele tirou a ilustração. Com sua licença, posso escrever no quadro o texto correto.

A professora assentiu, mesmo porque ela tinha uma leve queda para aquele adolescente que, uma vez ou outra, a olhava com olhares atravessados. Em suas noites de insônia, tomadas de pesadelos e fantasias, muitas vezes Prospício aparecia, não como um mirrado adolescente, mas como um jovem arrogante, trajando uniforme vermelho.

Prospício foi até o quadro-negro, que era verde, e ali escreveu, abaixo do texto da professora:
“Um fazendeiro tinha um bezerro e a mãe, do fazendeiro era também o pai do bezerro.”

Pelo que sei, foi dessa história que nasceu o ditado “para quem sabe ler, um pingo é letra”. Mesmo que seja um pingo torto caindo da linha
Etelvaldo Vieira de Melo





OLHO MUITO FUNDO O OLHO DO POEMA


.

Imagem: muraldecristal.blogspot.com
Olho muito fundo                                                             
O olho do poema.
A letra escrita e alterada,
Assim como casa pode ser asa.

Olho muito fundo
O olho do autor
Ator leitor
Do grande espetáculo.

A letra de Dante
Visita o inferno.
A letra vistosa de Baudelaire
Quando vê uma passante,
Sua alma gêmea.
Mas que não reencontrada,
A não ser na eternidade.

Uma passante,
Uma letra
Plena de brilhos
E purpurinas.

A letra de Dom Quixote,
Sonhador inveterado
Á procura de um falso Graal.

Olho bem fundo
O olho do anjo
Gordo e sorridente
De Aleijadinho.
O anjo perfeito,
Mas inapto,
Entre o sublime do céu
E a fortuna da terra.
Letra de pedra sabão
Espumando de vida
Que engrandece e cura
O escultor doente.

Olho bem fundo
A palavra e o verso
Em versos reversos
Que sonhamos.

Olho finalmente bem fundo
Os versos de Ana Cristina,
Enrola minha língua,
Os sentidos se expessam,
Porém com elegância.

Os versos de Ana C
São os mesmos de Dante:
Gatografia prismática
De uma escritora sutil
Entrando no paraíso.

Olho bem fundo o poema
De Ana Cristina Cesar,
Mas acho o oco do bloco
Escrito à pena.

Olho bem fundo
O olho do poema
De Ana Cristina Cesar
Mas mergulho em superfícies
Que me tolhem a cabeça.
O que acho?
Só o infinito fundo sem fundo.

Não sou Gil
Que a lê por inteiro;
Nem Mary
Que procura sentido.
Somente vejo sob a maquilage
A Gata de Olhos Pardos,
Aprontando-se no camarim.

Olho fundamente
O olho da atriz
Que se dandiza
Nas cartas
Escritas de Paris.

Ana Cristina
É a minha neblina,
Lançando as luvas
E não entregando as chaves.

Seus olhos de crayon
Analisam os meus
E me chamam hipócrita,
Crack, vertiginosa.
O olho de Ana C
Me vê pela fechadura
Enquanto veste os seus brilhos
Para exibir o poema.
A carta de Paris
É uma missiva
Que transforma em pó
Quem olha para trás de Eurídice
Mais uma das suas meninas sérias.

O APRESSADO COME CRU OU QUEIMA A LÍNGUA



    Já dizia Sócrates (estou me referindo a um pensador que viveu por volta de 450 a.C., quando a Grécia era risonha e solta, coisa de primeiro mundo, não esse país em estado de calamidade de hoje): “Eu só sei que nada sei”. Se aquele que era considerado sábio dizia uma coisa assim, não gostaria de ir além de minha insignificância, especialmente quando o assunto extrapola em muito a minha competência. De qualquer modo, como este espaço público da Internet faz lembrar o ditado que diz “quem está na chuva tem que se molhar”, eis que me vejo tomado de atrevimento, dando um passo além do que podem as minhas pernas.

    Sempre achei estranho o fato do Brasil, apesar de ser o maior país em número de católicos no mundo, não dispor, até o ano 2000, de um santinho sequer. Pensava: será por causa dessa miscigenação de índio, português e negro que é tão difícil ser santo nesse país? Não é por nada, pode ser que uma mistura explosiva assim não permite que alguém, que seja brasileiro da gema, chegue ao status de santo. Veja que os Estados Unidos, país onde o capitalismo fez o máximo de sucesso, já dispõem de inúmeros santos. Eu me pergunto: será porque ser católico lá é uma situação mais difícil do que ser católico cá, numa alusão ao dito que fala “em terra de cego, quem tem um olho é diferente”? Seria como a cotação de uma moeda: um gesto de caridade nos Estados Unidos vale mais do que o mesmo gesto no Brasil. Por ser um país católico, a caridade aqui é moeda corrente, inflacionada, de baixa cotação. Lá fora, onde é cada um pra si e outros que se danem, um gesto de altruísmo vale muito.

    Talvez eu esteja divagando em notas falsas, a verdade seja bem outra. Talvez tenha razão o velho Marx, quando diz que o econômico é que prevalece sobre os demais movimentos. Talvez (eu não estou falando de forma categórica, faço apenas uma suposição), talvez a própria santidade seja algo determinado sob a ótica capitalista. Que não seja por nada, custa caro, muito caro, um processo de canonização (além de caro, demorado: até chegar a santo, o candidato passa pelas categorias de Servo de Deus, Venerável e Beato). O Brasil era um país católico, mas pobre, não dispunha de recursos para bancar tamanha empreitada.

   Os tempos mudaram, conseguimos saldar a impagável dívida externa, as classes C e D emergiram, a ordem mundial como que sofreu um abalo sísmico e muitos que estavam em baixo foram para cima, enquanto os que estavam em cima caíram para baixo.

    Anos atrás, as turnês artísticas que aqui aportavam não passavam de terceira categoria. Quando ousaríamos assistir a uma apresentação dos Beatles? Hoje, seu remanescente ilustre, sir Paul McCartney, já conhece mais capitais brasileiras do que eu, por exemplo. O famoso Cirque du Soleil, entra ano e sai ano, sempre está aqui com suas apresentações.

    A globalização e o empuxo sofrido pelo Brasil fizeram com que o país entrasse, por via de consequência – como diria um finado político - no rol daqueles que ostentam santos em seus currículos. Eles são dois, por enquanto: Santa Paulina do Coração Agonizante de Jesus (Madre Paulina), nascida na Itália, canonizada em 2002 e Santo Antônio de Sant’Ana Galvão (Frei Galvão), o primeiro 100% Made in Brazil, nascido em São Paulo, tornado santo em 2007. Tivemos, recentemente, a beatificação de Nhá Chica, em 04/05/2013, mineira, natural de São João Del-Rei.

   Para mim, um exemplo de santidade foi minha mãe. Por razões econômicas, sei que ela não seria canonizada. Depois, existe todo aquele processo de investigação e sindicância sobre sua vida. Cairia no domínio público e ela seria reprovada por um pequeno deslize. Sob meu olhar, não tem nada demais, mas seria fatídico para os inquisidores:

    Certo dia, estava ela fritando torresmo lá no fogão à lenha da cozinha, quando foi abordada por um senhor, que a gente chamava de João Pesco, mas, que, na verdade, queria significar João Pêssego. Falar aquele nome todo era demais para a nossa língua.

    - Madrinha Leonina... – falou ele, com voz suplicante.

    Pelo tom de voz, mãe sabia qual o pedido que iria vir, em seguida.

    - O que foi, João? – perguntou ela, mais por perguntar.

    - Madrinha... a senhora poderia me dar um pouquinho de torresmo?

   - Dou, João. Só espere um pouco até estarem bem fritos e esfriados – respondeu minha mãe, armada de paciência.

    - Madrinha, por favor, madrinha, pode me dar assim mesmo! – ele falou com voz angustiada e mão estendida.

   - Já que você quer assim mesmo, toma! – enquanto falava, minha mãe despejou com a espumadeira um tanto de torresmo na mão de João.

    O pobre coitado soltou um grito triplamente angustiado - de espanto, dor e desespero - por não poder levar à boca aquilo que poderia acalmar seu desejo, enquanto, afoito, soprava a mão.

   Minha mãe era uma mulher extraordinária, mas tinha desses pequenos pecados veniais. Este aqui é um daqueles que impediria sua entrada no rol dos santos. Infelizmente.

   Etelvaldo Vieira de Melo

MANIFESTO



                          

É mês de setembro.  
Vamos setembrar.
Setembro das flores
Nascendo da carnadura rude
Do asfalto.
Flores que o poeta
Chamou de feias,
Mas nós vamos
Chamá-las belas.

Imagem: mosaicos-cida.blogspot.com
À prova de balas,
Sua beleza está nas praças,
Mesmo sabendo que as praças
Estão vendidas a custo
Das montanhas
Que hoje são superfícies
De cartões postais
Para os bairros nobres
De Belo Horizonte.

Contudo,
Apesar de em nossa terra
Belorizontina
Não cantarem os sabiás,
Apesar da fumaça
Setembro sempre chega
Havemos de setembrar.

Reunidos nas avenidas,
Também somos ipês
Que florem amarelos, roxos, rosas
Em manifestação.
Contra jardineiros infiéis
Que só veem as urnas,
E o dinheiro advindo
Das urnas,
Os malfeitores deputados
Os malfeitores dirigentes
Em setembro eles hão de ver
O povo setembrar.

Apesar da falta
De Independência,
Da falta de carinho
De carisma, de líderes,
Os seus filhos
(Ah, essa falta!)
Em Belo Horizonte
As crianças, os homens,
As mulheres, os velhos
Estão se setembrando
À espera da primavera.

É mês de setembro.
É mês de primavera.
Vamos soltar o grito,
Vamos comemorar.
Que todo o país seja livre
Para ao menos
Poder setembrar.


DO RUGIDO DE GATO AO MIADO DE LEÃO

Tive um colega de escola de quem perdi o contato ao longo do tempo. Recentemente, fui surpreendido por um telefonema seu. Ele conversava comigo e insistia para que identificasse de quem se tratava, mas não tinha como. Minha cabeça dava voltas e ele ali, obstinado, querendo de todas as maneiras que eu soubesse quem estava ao telefone. Acabou falando seu nome, depois de perceber que eu não seria capaz de adivinhar.

- Anatalino – falei, um tanto desnorteado. – Você tinha um vozeirão, tinha até apelido de Anatalino Besourão, e agora está falando fininho. O que aconteceu?

- Pois veja você, caro Realisvaldo. O tempo vai afinando a nossa voz. Eu que rugia feito leão, acabei miando feito gato.

A segunda namorada que tive (de uma série de três), eu fiquei conhecendo através do telefone. Ouvindo sua voz, fiquei instantaneamente apaixonado. Seria bom demais se a gente namorasse somente por telefonemas. Quando a conheci pessoalmente, embora não fosse de todo ruim, nada tinha daquela voz aveludada que encantava meus ouvidos. O namoro era daqueles de antigamente, de frequentar a casa, fazer sala com os pais. Quando saía de lá, já tarde da noite, tinha que descer as ruas do bairro correndo, atacado por latidos de cães. Ao entrar no ônibus lá em baixo, na Avenida, o coração parecia estar saindo pela boca, mas os ouvidos ainda estavam anestesiados pela voz melodiosa da namorada.

Meu amigo Risvaldo só assiste a filmes legendados, por causa de sua leve perda auditiva. Pessoalmente, também prefiro filmes com legendas, pois considero as dublagens de péssima qualidade, artificiais, empostadas, totalmente diferentes do original. Na maioria das vezes, falta sincronia entre personagem e voz. É por isso que atores famosos emprestam suas vozes a personagens de animação. Além dos nomes conhecidos, atrativos para as bilheterias, sabem dar vida a seus papéis.

No bairro onde moro, existe uma mulher, Deusarina, que possui uma voz extraordinária, não pela entonação, mas por causa de sua risada. Com o pedido de desculpas pela comparação, ela ri qual hiena, mas com tal intensidade que praticamente o bairro inteiro escuta. Se fosse comparada a um pássaro belga, seria da classe campainha, aquela cujo canto pica, duplica, triplica e repica interminavelmente. Às vezes em que saía de casa mal-humorado, ao ouvir seu riso, ficava me questionando, tentando entender quem estaria enganado naquele momento: se Deusarina, com sua alegria; se eu, com meu azedume. Só sei que, enquanto tentava resolver o enigma, o mau humor como que evaporava.

Uma amiga comum, a Percilina do Horinando, insinuava que sua alegria vinha daquela água branca, aquela que passarinho não bebe. Deusarina discordava, dizia que sua alegria era legítima, genuína, sem aditivos químicos ou alcoólicos. Assim, ela continua espalhando sua alegria pelas ruas do bairro.

Existe um filme de ficção científica em que os moradores de um planeta são, fisicamente, idênticos. Trata-se de uma produção hollywoodiana, mas que apresento, em versão Herbert Richers, no idioma nacional. Como dizia, os moradores desse planeta eram idênticos, cara de um, focinho do outro. Para não serem confundidos - por exemplo, o Antônio Melhorança com o Antônio Morrendo das Dores – todos usavam máscaras. Assim, poderiam ser diferenciados.

Eu gostaria muito que, em nosso planeta Terra, as pessoas até que poderiam ser, fisicamente, diferentes, poderiam ter tons de voz variados, como um rugido de leão, um miado de gato ou um canto aveludado de rouxinol. O que importava mesmo é que todos só falassem a verdade. Assim, como seria bom ouvir discurso de um político ou a fala de um religioso! Nos tribunais de justiça, os réus iriam descrever os fatos tais quais e os juízes iriam arbitrar as sentenças. Advogados seriam possíveis para que a verdade se tornasse mais transparente, já que nem todos dispõem do dom da palavra.

Quando penso em como seria bom viver num mundo assim, com a verdade, nunca a mentira, sendo proferida nas escolas, nas famílias, nos ambientes de trabalho, quando penso nisso sou reprimido por uma passagem bíblica, em que Pilatos pergunta a Jesus: “Afinal, o que é a verdade?”.

Apesar dessa questão crucial, continuo com meu devaneio, com meu sonho. Até ser acordado pelo toque do telefone e uma operadora de telemarketing, com voz suave, aveludada e aroma de licor de chocolate, me oferecer um sensacional plano de saúde. Aceito, pois, nesse meu projeto de acreditar na humanidade, fica estabelecida como regra número um que a propaganda, a publicidade, não mais explora as fantasias e desejos das pessoas; ela está aí para oferecer-lhes o que há de melhor, ela só vai dizer a verdade.

Etelvaldo Veira de Melo