Nesta longa estrada da vida, não pense que vou
correndo; ando devagar, porque já tive pressa. Andando devagar, pude perceber o
que dizia um cartaz afixado na vitrine de uma loja de importados: “Deus criou o céu e a terra; a China fez o
resto”. Por causa de meu retardo mental, na hora, achei aquilo engraçado;
depois, fiquei muito irritado, pois julguei que os chineses estavam
extrapolando em arrogância. Pensei que já estava passando da hora de inventar algo
exportável, além do indefectível minério de ferro. Foi hoje que tive aquela
iluminação repentina e que os estrangeiristas chamam de insight. Para traduzir
essa minha ideia, faz-se necessário, primeiro, descrever três situações de
vida. Todo mundo sabe: existe muita coisa que pode incomodar a gente, causando
contrariedade e desgosto. Como as pessoas ainda acham que esse é o país do
futebol, pode ser que, pra muitos, uma ginga de corpo e um drible sejam a
solução; para outros, não tem como evitar o choque e o sofrimento. Em geral,
esses outros acontecem quando a partida caminha para o final, o cansaço começa
a tomar conta e as pernas já não aguentam correr como antes. A primeira
situação de vida a considerar: uma
espécie de sofrimento de natureza psicológica. Ela serve de alerta, dizendo
que a vida já não é feita só de sorrisos. Já aconteceu com você? Uma garota
que, tempos atrás, manteria uma razoável distância de sua pessoa, de repente,
aproxima-se toda descuidada e com uma conversa cheia de intimidades. Você se
assusta, pergunta para si mesmo o que está sucedendo, qual a razão daquela
chuva em sua horta, imagina que tirou, sem se dar conta, a sorte grande da
loteria. A princípio, fica todo envaidecido, mas logo vai perceber,
amargamente, que havia se tornado um cão que ladra, rosna, ameaça atacar, mas
não morde, e aquela menina esperta estava sabendo muito bem disso. Só fica
faltando a garota afagar sua cabeça e você abanar o rabinho. Você, que ainda se
julga tão macho, poderá não querer entregar os pontos, resiste bravamente.
Nesse caso, é bom que tenha sempre em mãos uma quantia em dinheiro: existem
meninas que aceitam dizer que você é o máximo a troco de uma bonificação
financeira. Mas não pense que irá conseguir maiores intimidades, nem pense em
se aproximar de uma farmácia onde estão à venda aqueles comprimidos que
prometem ressuscitar defuntos. Essas garotas são doutoradas em enganar trouxas.
Depois, você se lembra do Modesto Pinto? Foi tomar uns comprimidinhos daqueles
e partiu dessa pra melhor. Esse trauma psicológico de descobrir que já não mais
desperta instintos libidinosos, repito, representa a primeira situação de vida
a motivar o meu invento. A segunda situação é outra coisa desagradável que
acontece quando o jogo está bem adiantado: você
levar um tombo e cair de forma desastrada, tal como sucedeu com Edolino
Galvão. Ele estava indo em direção à sua casa, carregando umas comprinhas numa
sacola. Caminhava pela margem da avenida principal do bairro, no sentido
contrário dos veículos. No ponto em que havia uma baixada, resolveu ir pelo
passeio, nas proximidades de um bar. Duas pessoas, que aparentavam ter tomado
umas e outras, conversavam no meio do passeio. Edolino desviou para a direita,
mas não viu uma enorme canaleta ali. O que sucedeu é que ele pisou em falso e
se esparramou todo pelo cimentado. Quando uma pessoa jovem cai, pode até mesmo
ser engraçado, os programas de TV exploram muito isso; quando se trata de uma
pessoa mais idosa, o tombo vira motivo de preocupação. Quando fiquei sabendo o
que havia ocorrido com Edolino, tratei de ligar para a Prefeitura, registrando
uma reclamação. Outras pessoas poderiam sofrer o mesmo acidente, aquela canaleta
exigia uma grade. Os passeios da avenida também estão todos esburacados. Foi
então que me acorreu a lembrança daquele ditado: se ficar, o bicho pega; se
correr, o bicho come. Se ando na avenida, corro o risco de ser atropelado; se
vou pelo passeio, corro o risco de pisar num buraco e ficar todo esfolado. Como
dizia um vizinho: está complicado. A propósito, ando muito preocupado com esse
vizinho e amigo: ele arrumou uma dor nas escadeiras que não tem jeito de sarar:
já foi ao médico, fez exames, chapas, tomou injeção, fez fisioterapia, me falou
que o médico disse que ele está com uma inflamação no nervo asiático, falou um
tanto de nome complicado, mas resolver o problema dele que é bom mesmo, nada. Trate
de melhorar logo, amigo, pois o seu bom humor me faz falta. Sem ele, fica mais
difícil tocar em frente. A terceira situação constrangedora que passamos na
vida é a de ser assaltado. Osvaldo
Faspalha já experimentou isso por treze vezes; doze, a bem da verdade, já que
um dos objetos roubados lhe foi devolvido, um relógio, que o ladrão reconheceu
tratar-se de uma porcaria. Foi juntando as experiências de Modesto Pinto,
Edolino Galvão e Osvaldo Faspalha, somadas ao desgaste que o tempo provoca na
aparência das pessoas, que tive a ideia de uma nova invenção: o espelhoshop® ou mirrorshop®. Na portaria do edifício
onde estou fazendo tratamento dentário existe um enorme espelho, tomando conta
de toda a parede lateral. Enquanto aguardo o elevador, ocasionalmente olho para
ele e, geralmente, sinto aumentar o meu estado de depressão. Aliás, minha autoestima
vai diminuindo toda vez que faço confronto com um espelho. Pensei: por que não
disponibilizar para as pessoas um sensor (microchip), capaz de fazer uma
leitura de suas fisionomias quando se olham num espelho? Os dados coletados
são, imediatamente, convertidos e as imperfeições corrigidas; a imagem
refletida atinge 98% de melhoria.
Assim, as pessoas vão se ver bonitas e atraentes. Muitos podem alegar que já
existem as plásticas, os botox e os photoshops. Sei disso, mas também sei que
tais produtos são caros, proibitivos para quem mal consegue frequentar uma loja
de R$1,99. Mas que não se assustem os capitalistas: o novo visual frente ao
espelho será possível somente para aqueles que fizerem o implante do tal microchip
(mirrorshop®) na orelha, pagando módicos R$39,99. O
refil, com 12 meses de vida útil, sairá ao preço de R$19,99. Quando esse novo
produto for comercializado, o índice de satisfação das pessoas estará lá em
cima, mesmo que as aparências verdadeiras estejam lá em baixo. Só mais uma
coisa: aqueles que se sentirem incapacitados, financeiramente, de adquirir o mirrorshop® poderão se inscrever num
programa de bolsas do governo. Será apenas mais uma, em meio a centenas de
outras, e o programa poderá se chamar “Meu
espelho, minha alegria”. Aí, então, estaremos fazendo jus ao slogan: sem
medo de ser feliz.
PS: Como os chineses são
muito parecidos uns com os outros (cara de um, focinho do outro), tenho minhas
dúvidas que eles venham a desenvolver esse projeto. Se eu não tivesse queimado
quase todos meus neurônios em jogos de videogame, era hora de me arriscar num
curso de eletrônica.
Etelvaldo Vieira de
Melo
0 comentários:
Postar um comentário