É preciso ter cuidado com as
palavras, pois elas podem nos ocasionar várias espécies de dissabores. Como
muito bem dizia Belchior, após se apresentar como um rapaz latino-americano:
“as palavras são navalhas”.
Goiabeiras é um lugarejo que
se esconde lá pelo interior do sertão. É lá onde moram os irmãos Lindomar e
Orla Marina. Tais nomes se devem ao fato do pai, José Arrebola, em certa
ocasião da vida, ter conhecido o mar e quis registrar, para seus conterrâneos e
para a posteridade, o encantamento que experimentou. Todos do vilarejo sabiam
dessa sua viagem extraordinária e não se cansavam de ouvir a descrição daquela
imensidão de água, areias, do rugido das ondas. Tudo isso maravilhava as
pessoas, ainda mais quando ouviam a descrição de que toda aquela água era
salgada! Como isso é possível? – perguntavam, desnorteadas diante do mistério.
Naquela manhã, dona
Muriquinha Mijurim, professora da turma do terceiro ano da única escola local,
passou uma reprimenda em Orla Marina, logo que os alunos se acomodaram em suas
carteiras:
- Onde já se viu tanta sujeira, Orlinha? Veja suas mãos e
suas unhas como estão. Suas unhas parecem que estão de luto, de tão sujas!
- Não se incomode, prefessora, amanhã elas vai está
limpinhas, só a senhora veno. Hoje eu vou ajudá minha mãe amassá goiaba pra
fazê doce. Nóis stá cheio de encomenda de goiabada.
Dona Muriquinha sentiu um nó
na garganta e que foi descendo, lentamente, para seu estômago. Pensou: “E eu
que aprecio tanto a goiabada de dona Jovelina!”
Nessas mesmas horas, já na
turma do sétimo ano, Lindomar estava sendo humilhado pela sua professora,
Santinha dos Santos. No dia anterior, ele havia entregue uma redação em que
descrevia o meio rural. Para torná-la mais atraente, teve a ideia de colar uma
passagem extraída do Almanaque Biotônico Fontoura. Ela foi transcrita assim:
“Um fazendeiro tinha um bezerro e a mãe do fazendeiro era também o pai do
bezerro.”
Santinha dos Santos já havia
ultrapassado o Cabo da Boa Esperança e se aproximava, perigosamente, do Cabo
das Tormentas. Seu corpo virgem estava perdendo o frescor da juventude, vez por
outra sentia subir lá de baixo o calor de um vulcão prestes a explodir. Estava
disposta a abrir mão de todos os santos do nome e entregaria sua alma para a
danação, desde que um homem, tal qual soldado dos bombeiros, viesse até ela e
jogasse uma mangueira de água sobre seu corpo em ardência.
Santinha estava assim, com
os nervos à flor da pele, qualquer coisinha a irritava. Agora mesmo vem esse
Lindomar, mangando com seus pais, ela que era filha dos únicos fazendeiros da
região! Por isso não teve dó ou piedade: aplicou-lhe um zero e tratou de
humilhá-lo o máximo perante os colegas. Escreveu no quadro a passagem que lhe
havia despertado tanto furor.
Lindomar, que era muito
tímido e tinha o rosto coberto de espinhas, ficou vermelho como um pimentão
maduro. Ele foi salvo pelo amigo Prospício que, ouvindo o destempero da
professora, levantou a mão para dizer:
- Professora, eu estava na casa de Lindomar e vi o
almanaque de onde ele tirou a ilustração. Com sua licença, posso escrever no
quadro o texto correto.
A professora assentiu, mesmo
porque ela tinha uma leve queda para aquele adolescente que, uma vez ou outra,
a olhava com olhares atravessados. Em suas noites de insônia, tomadas de
pesadelos e fantasias, muitas vezes Prospício aparecia, não como um mirrado
adolescente, mas como um jovem arrogante, trajando uniforme vermelho.
Prospício foi até o
quadro-negro, que era verde, e ali escreveu, abaixo do texto da professora:
“Um
fazendeiro tinha um bezerro e a mãe, do fazendeiro era também o pai do
bezerro.”
Pelo que sei, foi dessa história
que nasceu o ditado “para quem sabe ler, um pingo é letra”. Mesmo que seja um
pingo torto caindo da linha
Etelvaldo Vieira de
Melo
1 comentários:
De onde voce tira a ideia dos nomes dos bois (personagens) de suas histórias. Hilários. Prospício, talvez pela intenção da professora, deveria ser chamado Prespúcio.
A frase eu cohecia, mas é dificílimo colocar a vírgula.
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