DO RUGIDO DE GATO AO MIADO DE LEÃO

Tive um colega de escola de quem perdi o contato ao longo do tempo. Recentemente, fui surpreendido por um telefonema seu. Ele conversava comigo e insistia para que identificasse de quem se tratava, mas não tinha como. Minha cabeça dava voltas e ele ali, obstinado, querendo de todas as maneiras que eu soubesse quem estava ao telefone. Acabou falando seu nome, depois de perceber que eu não seria capaz de adivinhar.

- Anatalino – falei, um tanto desnorteado. – Você tinha um vozeirão, tinha até apelido de Anatalino Besourão, e agora está falando fininho. O que aconteceu?

- Pois veja você, caro Realisvaldo. O tempo vai afinando a nossa voz. Eu que rugia feito leão, acabei miando feito gato.

A segunda namorada que tive (de uma série de três), eu fiquei conhecendo através do telefone. Ouvindo sua voz, fiquei instantaneamente apaixonado. Seria bom demais se a gente namorasse somente por telefonemas. Quando a conheci pessoalmente, embora não fosse de todo ruim, nada tinha daquela voz aveludada que encantava meus ouvidos. O namoro era daqueles de antigamente, de frequentar a casa, fazer sala com os pais. Quando saía de lá, já tarde da noite, tinha que descer as ruas do bairro correndo, atacado por latidos de cães. Ao entrar no ônibus lá em baixo, na Avenida, o coração parecia estar saindo pela boca, mas os ouvidos ainda estavam anestesiados pela voz melodiosa da namorada.

Meu amigo Risvaldo só assiste a filmes legendados, por causa de sua leve perda auditiva. Pessoalmente, também prefiro filmes com legendas, pois considero as dublagens de péssima qualidade, artificiais, empostadas, totalmente diferentes do original. Na maioria das vezes, falta sincronia entre personagem e voz. É por isso que atores famosos emprestam suas vozes a personagens de animação. Além dos nomes conhecidos, atrativos para as bilheterias, sabem dar vida a seus papéis.

No bairro onde moro, existe uma mulher, Deusarina, que possui uma voz extraordinária, não pela entonação, mas por causa de sua risada. Com o pedido de desculpas pela comparação, ela ri qual hiena, mas com tal intensidade que praticamente o bairro inteiro escuta. Se fosse comparada a um pássaro belga, seria da classe campainha, aquela cujo canto pica, duplica, triplica e repica interminavelmente. Às vezes em que saía de casa mal-humorado, ao ouvir seu riso, ficava me questionando, tentando entender quem estaria enganado naquele momento: se Deusarina, com sua alegria; se eu, com meu azedume. Só sei que, enquanto tentava resolver o enigma, o mau humor como que evaporava.

Uma amiga comum, a Percilina do Horinando, insinuava que sua alegria vinha daquela água branca, aquela que passarinho não bebe. Deusarina discordava, dizia que sua alegria era legítima, genuína, sem aditivos químicos ou alcoólicos. Assim, ela continua espalhando sua alegria pelas ruas do bairro.

Existe um filme de ficção científica em que os moradores de um planeta são, fisicamente, idênticos. Trata-se de uma produção hollywoodiana, mas que apresento, em versão Herbert Richers, no idioma nacional. Como dizia, os moradores desse planeta eram idênticos, cara de um, focinho do outro. Para não serem confundidos - por exemplo, o Antônio Melhorança com o Antônio Morrendo das Dores – todos usavam máscaras. Assim, poderiam ser diferenciados.

Eu gostaria muito que, em nosso planeta Terra, as pessoas até que poderiam ser, fisicamente, diferentes, poderiam ter tons de voz variados, como um rugido de leão, um miado de gato ou um canto aveludado de rouxinol. O que importava mesmo é que todos só falassem a verdade. Assim, como seria bom ouvir discurso de um político ou a fala de um religioso! Nos tribunais de justiça, os réus iriam descrever os fatos tais quais e os juízes iriam arbitrar as sentenças. Advogados seriam possíveis para que a verdade se tornasse mais transparente, já que nem todos dispõem do dom da palavra.

Quando penso em como seria bom viver num mundo assim, com a verdade, nunca a mentira, sendo proferida nas escolas, nas famílias, nos ambientes de trabalho, quando penso nisso sou reprimido por uma passagem bíblica, em que Pilatos pergunta a Jesus: “Afinal, o que é a verdade?”.

Apesar dessa questão crucial, continuo com meu devaneio, com meu sonho. Até ser acordado pelo toque do telefone e uma operadora de telemarketing, com voz suave, aveludada e aroma de licor de chocolate, me oferecer um sensacional plano de saúde. Aceito, pois, nesse meu projeto de acreditar na humanidade, fica estabelecida como regra número um que a propaganda, a publicidade, não mais explora as fantasias e desejos das pessoas; ela está aí para oferecer-lhes o que há de melhor, ela só vai dizer a verdade.

Etelvaldo Veira de Melo

1 comentários:

´Mário Cleber disse...

Esta família ... Valdo é muito grande. Quantos irmaos...Mas o que aconteceu porque o rugido do leao virou miado de gato? Me conta porque...

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