O APRESSADO COME CRU OU QUEIMA A LÍNGUA



    Já dizia Sócrates (estou me referindo a um pensador que viveu por volta de 450 a.C., quando a Grécia era risonha e solta, coisa de primeiro mundo, não esse país em estado de calamidade de hoje): “Eu só sei que nada sei”. Se aquele que era considerado sábio dizia uma coisa assim, não gostaria de ir além de minha insignificância, especialmente quando o assunto extrapola em muito a minha competência. De qualquer modo, como este espaço público da Internet faz lembrar o ditado que diz “quem está na chuva tem que se molhar”, eis que me vejo tomado de atrevimento, dando um passo além do que podem as minhas pernas.

    Sempre achei estranho o fato do Brasil, apesar de ser o maior país em número de católicos no mundo, não dispor, até o ano 2000, de um santinho sequer. Pensava: será por causa dessa miscigenação de índio, português e negro que é tão difícil ser santo nesse país? Não é por nada, pode ser que uma mistura explosiva assim não permite que alguém, que seja brasileiro da gema, chegue ao status de santo. Veja que os Estados Unidos, país onde o capitalismo fez o máximo de sucesso, já dispõem de inúmeros santos. Eu me pergunto: será porque ser católico lá é uma situação mais difícil do que ser católico cá, numa alusão ao dito que fala “em terra de cego, quem tem um olho é diferente”? Seria como a cotação de uma moeda: um gesto de caridade nos Estados Unidos vale mais do que o mesmo gesto no Brasil. Por ser um país católico, a caridade aqui é moeda corrente, inflacionada, de baixa cotação. Lá fora, onde é cada um pra si e outros que se danem, um gesto de altruísmo vale muito.

    Talvez eu esteja divagando em notas falsas, a verdade seja bem outra. Talvez tenha razão o velho Marx, quando diz que o econômico é que prevalece sobre os demais movimentos. Talvez (eu não estou falando de forma categórica, faço apenas uma suposição), talvez a própria santidade seja algo determinado sob a ótica capitalista. Que não seja por nada, custa caro, muito caro, um processo de canonização (além de caro, demorado: até chegar a santo, o candidato passa pelas categorias de Servo de Deus, Venerável e Beato). O Brasil era um país católico, mas pobre, não dispunha de recursos para bancar tamanha empreitada.

   Os tempos mudaram, conseguimos saldar a impagável dívida externa, as classes C e D emergiram, a ordem mundial como que sofreu um abalo sísmico e muitos que estavam em baixo foram para cima, enquanto os que estavam em cima caíram para baixo.

    Anos atrás, as turnês artísticas que aqui aportavam não passavam de terceira categoria. Quando ousaríamos assistir a uma apresentação dos Beatles? Hoje, seu remanescente ilustre, sir Paul McCartney, já conhece mais capitais brasileiras do que eu, por exemplo. O famoso Cirque du Soleil, entra ano e sai ano, sempre está aqui com suas apresentações.

    A globalização e o empuxo sofrido pelo Brasil fizeram com que o país entrasse, por via de consequência – como diria um finado político - no rol daqueles que ostentam santos em seus currículos. Eles são dois, por enquanto: Santa Paulina do Coração Agonizante de Jesus (Madre Paulina), nascida na Itália, canonizada em 2002 e Santo Antônio de Sant’Ana Galvão (Frei Galvão), o primeiro 100% Made in Brazil, nascido em São Paulo, tornado santo em 2007. Tivemos, recentemente, a beatificação de Nhá Chica, em 04/05/2013, mineira, natural de São João Del-Rei.

   Para mim, um exemplo de santidade foi minha mãe. Por razões econômicas, sei que ela não seria canonizada. Depois, existe todo aquele processo de investigação e sindicância sobre sua vida. Cairia no domínio público e ela seria reprovada por um pequeno deslize. Sob meu olhar, não tem nada demais, mas seria fatídico para os inquisidores:

    Certo dia, estava ela fritando torresmo lá no fogão à lenha da cozinha, quando foi abordada por um senhor, que a gente chamava de João Pesco, mas, que, na verdade, queria significar João Pêssego. Falar aquele nome todo era demais para a nossa língua.

    - Madrinha Leonina... – falou ele, com voz suplicante.

    Pelo tom de voz, mãe sabia qual o pedido que iria vir, em seguida.

    - O que foi, João? – perguntou ela, mais por perguntar.

    - Madrinha... a senhora poderia me dar um pouquinho de torresmo?

   - Dou, João. Só espere um pouco até estarem bem fritos e esfriados – respondeu minha mãe, armada de paciência.

    - Madrinha, por favor, madrinha, pode me dar assim mesmo! – ele falou com voz angustiada e mão estendida.

   - Já que você quer assim mesmo, toma! – enquanto falava, minha mãe despejou com a espumadeira um tanto de torresmo na mão de João.

    O pobre coitado soltou um grito triplamente angustiado - de espanto, dor e desespero - por não poder levar à boca aquilo que poderia acalmar seu desejo, enquanto, afoito, soprava a mão.

   Minha mãe era uma mulher extraordinária, mas tinha desses pequenos pecados veniais. Este aqui é um daqueles que impediria sua entrada no rol dos santos. Infelizmente.

   Etelvaldo Vieira de Melo

2 comentários:

´Mário Cleber disse...

kkkk. Ainda bem que não gosto de torresmo. Eu, hein? Me inclua fora desta.. Também gostei do "empuxo". Nhá Chica que deve estar arrependida de ter se tornado santa, tal o excessivo número de pedidos por parte dos fiéis, nasceu em uma cidadezinha perto de são joão, chamada algo assim de ... "boa morte". Passando pela rodovia se vê a plaquinha: Aqui nasceu Beata Nhá Chica. Mas ela ficou morando o resto da vida em Baependi, onde foi beatificada.

Anônimo disse...

Prezado leitor Mário , o local onde nasceu Nhá Chica ,à ėpoca , chamava-se Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno, Distrito de São João Del Rei, segundo pesquisa feita na internet. Em algum lugar consta, tão somente, São João Del Rei. Voltando à crônica, não posso deixar de dizer ao escritor que o episódio da mãe Leonina , o torresmo quente e o João Pesco (era assim que nós o chamávamos e estava certo....) está sempre presente em minhas lembranças. Eu acho que o pequeno pecado venial ( puxa, quanto tempo não ouço falar em pecado e muito menos venial, (rsrsrs) não tira o mérito de um dia Mãe Leonina vir a integrar o rol dos santos. Quem sabe, na época, o processo poderá ser menos oneroso e um descendente seu cuidar de todo o processo? Vicente

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