Um pensador da Antiguidade, para
quem eu nutria certa dose de consideração e respeito, dizia que o ser é e o
não-ser não é, que um não pode – sob nenhuma hipótese – ser o outro. Dia
desses, um fato banal veio jogar por terra tão alta construção metafísica.
Estava
eu no ponto de ônibus, aguardando esse transporte coletivo e socializante para
me deslocar até um consultório médico-urológico. Para desviar meus pensamentos do
triste fim que me aguardava, procurei algo que tomasse minha atenção. Em um
poste ao lado do ponto havia um aviso de:
Fui ler o que estava escrito e fiquei sabendo que três garotas (suponho) deixavam seus telefones de contato para quem soubesse notícia de uma cadela da raça Shih Tzu, de coloração branca e preta, com três lacinhos, vermelhos com bolas pretas, amarrados na cabeça. O anúncio estampava, também, um retrato daquele animalzinho de estimação.
Durante muito tempo, fiquei pensando naquelas garotas, imaginando a ansiedade com que procuravam a cadela, que atendia pelo nome de Nani. Achei aquele gesto bonito, fiquei torcendo para que fossem bem sucedidas na procura e que a história tivesse um final feliz.
Enquanto digeria lentamente essas considerações (para não pensar naquela outra coisa), comecei a vislumbrar um pensamento diferente, de igual intensidade e de sentido oposto. Considerei que aquelas garotas agiam de maneira errada, estampando em postes aquele tipo de anúncio, já que ali não é local apropriado para esse tipo de coisa. Imagina se todas as pessoas inventarem de colocar anúncios em postes!
Considero que, se tem algo de bom acontecendo nas cidades brasileiras, esse bom é justamente a recuperação da dignidade dos postes. Tempos atrás, era ali que cartazes se sobrepunham, em disputa acirrada, notadamente por políticos em véspera de eleição. Novas legislações foram criadas, punindo com multa os infratores. Entre os teimosos e sobreviventes, visualizo somente um ou outro anúncio de videntes e cartomantes, que devem estar “matando cachorro a grito”, prometendo mundos e fundos: livrar a pessoa de olho gordo, trazer de volta a pessoa amada, ter sucesso nos negócios, tudo a troco de uma simples consulta.
Falando em cachorro, vejo que eles se constituem também uma ameaça à integridade física dos postes. Pensando nisso, vou tentar convencer um amigo a se candidatar à vereança nas próximas eleições, com o projeto de instalação de sanitários para cachorros em parques e jardins. Os proprietários de cães estão mal-acostumados com a higiene pública. Ontem mesmo, um técnico, que veio fazer um serviço em minha residência, dizia, tomado de orgulho, que, todos os dias, assim que chega em casa do serviço, tem que levar seu cachorrinho de estimação para um passeio na rua, onde ele faz suas necessidades fisiológicas. Duvideodó que esse senhor se dê ao trabalho de levar consigo uma pazinha e um saco plástico para recolher os possíveis dejetos sólidos ou pastosos despejados em via pública pelo seu amiguinho de coração!
Associei os postes aos cachorros e, agora, vejo que os cachorros se ligam aos políticos, que, por sua vez, estão engavetados, tal como numa situação de trânsito, aos juízes do STJ. Esses juízes, vira e mexe, inventam ou trazem à tona novos termos para serem incorporados ao nosso vocabulário. Está lembrado da Teoria do Domínio do Fato, quando da Ação Penal 470, afetuosamente apelidada de Mensalão? Agora inventaram um tal de Embargo Infringente, que vem a ser um recurso impetrado pelo acusado, quando não há unanimidade no julgamento de apelação. Tal embargo nos mostra que uma coisa não só pode ser outra coisa, como também pode ser várias outras. Assim, ele pode se desdobrar em Embargo Absorvente, Solvente, Emoliente, Detergente, Repelente.
Quando penso nisso tudo que anda acontecendo no país, fico cada vez mais convencido de que a nossa Justiça até pode ter seus olhos vedados, mas que tem um olfato apuradíssimo, isso tem, principalmente quando existe cheiro de dinheiro circulando no ar. Depois, parece, nossa legislação apresenta mais furos que as lonas de circos que frequentavam minha cidade natal.
Estava pensando nos desdobramentos de tais considerações, quando me vi ajeitando a calça e me despedindo do médico. Também parece que o exame transcorreu normalmente, mas nem me dei conta, com o pensamento voltado para Nani, os postes, os cachorros, os políticos e juízes. De maneira intuitiva, entrei naquele estado que os iogues chamam de Alfa. Acabei usando um princípio da Física, que diz não ser possível dois objetos ocuparem o mesmo espaço, ao mesmo tempo: pensando numa coisa, deixei o constrangimento de ter o pensamento voltado para outra, desagradável e dolorosa.
Aproveito a ocasião para lhe repassar esse aplicativo gratuito, útil em várias situações de vida, quando você poderá fingir que está, não estando; estando em outra, deixará de estar naquela em que não quer estar.
Etelvaldo Vieira de Melo
2 comentários:
Homem que é homem tem que visitar periodicamente o urologista sem necessidade de altas reflexœs metafísicas. Com próstata não se brinca.
Gostei. Boa reflexão.
Prof. Marcos Soares
Postar um comentário