LEMBRANDO AS ÁRVORES DE LIVROS DE PARATY

                                           Para Maria Apparecida de Mattos
                                                 
Caso fosse montar uma árvore feita de livros, a exemplo do que ocorre durante o festival literário de Paraty, um deles seria “Os Frutos da Terra”, de André Gide, livro que – por ironia - só consegui ler até a metade.
Devo ter adquirido esse livro por causa do preço acessível. Trata-se de um exemplar pequeno, de encadernação simples e papel de baixa qualidade. Na época, eu sobrevivia a duras penas, graças a uma mesada que mal dava para vencer o mês.
Assim que comecei a leitura, também comecei também a ter agradáveis surpresas. O autor me chamava pelo nome de Nathanael e dizia coisas que tocavam fundo meu coração adolescente. Fui sublinhando as passagens mais significativas, o que representava a quase totalidade do que lia. Exemplos?
Que tua visão seja nova a cada novo instante.
Não basta ler que as areias das praias são doces; quero que meus pés nus as sintam... É-me inútil todo conhecimento que uma sensação não precedeu.
Nathanael, que toda emoção te possa ser uma embriaguez. Se o que comes não te embriaga, é que não tens muita fome.
Chegando a esta passagem, quase que joguei o livro para o alto, tamanha a minha emoção:
Nathanael, será que compreendes suficientemente o patético de minhas palavras? Quisera aproximar-me de ti mais ainda.
E como Eliseu se estendeu sobre o filho da Sulamita para ressuscitá-lo – “a boca sobre a boca, os olhos sobre os olhos, as mãos sobre as mãos” - quisera com o meu grande coração radioso contra a tua alma ainda tenebrosa, estender-me sobre ti por inteiro, minha boca sobre a tua boca e minha fronte sobre tua fronte, tuas mãos frias em minhas mãos ardentes, e meu coração palpitante... (“E a carne da criança se aqueceu” - escreve ele...) a fim de que acordes na volúpia - e depois me deixes – para uma vida palpitante e desregrada.
Saí correndo pelo corredor do prédio onde estudava e quase joguei ao chão um colega de turma.
Afoito, fui logo dizendo:
- Você não faz ideia do livro que estou lendo. É uma das coisas mais bonitas que já vi em minha vida.
O colega quis saber o nome do autor e o trecho que tanto me tocara.
- O autor se chama André Gide – disse eu. – A passagem é esta aqui – mostrei-lhe, apontando com o dedo.
Após a leitura, em tom de ironia, meu colega perguntou:
- Por acaso, sabe você quem é ou quem foi André Gide?
- Não – respondi. – Nem faço a mínima ideia.
- Pois fique sabendo que André Gide foi um dos mais famosos... homossexuais da França.
Ao ouvir aquelas palavras, senti um aperto no coração, acompanhado do sentimento de que o chão me faltava.
- Ah... – pensei em voz alta. – Quer dizer que esta passagem do profeta... Como posso ser tão ingênuo!
A conclusão de tudo é que acabei deixando o livro pela metade. Depois da conversa com o colega, eu havia me tornado um leitor arisco e desconfiado. Em outras palavras, eu havia me armado de preconceito e o preconceito fecha as portas para qualquer tipo de diálogo e entendimento. O preconceituoso se acha dono da verdade, não admite outro ponto de vista que não seja o seu.
Assim, aprendi muito com a leitura de “Os Frutos da Terra”. Acho que a principal lição tem a ver com os limites tênues entre a postura crítica e a preconceituosa.
Senso crítico e preconceito são duas armas aparentemente parecidas, mas cujos resultados são bem distintos. O senso crítico é uma espécie de filtro através do qual você não se deixa manipular pelas opiniões alheias. É um instrumento essencial nessa sociedade de massa, onde os meios de comunicação forjam opiniões e moldam comportamentos. Já o preconceito é uma arma letal que elimina qualquer possibilidade de diálogo e de enriquecimento próprio.
Agora, voltando às minhas considerações pessoais, quando olho para minha vida, quantas coisas bonitas deixei de aprender por causa do preconceito!  E o pior: quanto mais o tempo passa, parece que mais preconceituoso eu me torno. Quero, preciso, tenho urgência de resgatar aquele olhar que deixei na minha infância: um olhar puro, curioso, de espanto e admiração, de quem quer saber, mas destituído de maldade, de pré-juízo, de preconceito.
PS: Este texto é uma releitura de “Quem faz pré-juízo fica no prejuízo”, publicado em “Caminhos do Viver: os Reflexos e as Estações”. Minha parceira de blog, a Graça, entendida dessas questões linguísticas, diz que estou fazendo uma “intratextualidade”. Tirando este termo assombroso, o que incomoda mesmo é essa atitude preconceituosa diante da vida. Melhor correr o risco de uma decepção do que fechar as portas para o outro, impedindo –através do preconceito – que ele revele suas riquezas e potencialidades. 
Etelvaldo Vieira de Melo

           
             
 


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