DE VOLTA PARA O PASSADO



Imagem: redatornacional.blogspot.com



Em memória de Cleber, pessoa admirável, grande amigo, que nos       deixou em abril de 2015  e com um tanto de conversa pra ser resolvida.
O ano de 1980 estava começando, verdinho ainda, e o país vivia os desdobramentos daquela distensão, lenta, gradual e gradativa, tramada pelo general Geisel. O poder ainda continuava nas mãos dos militares, representados pela figura do general Figueiredo. Tem a História o compromisso de explicar direitinho o que aquele general estava fazendo ali, já que ele não escondia seu desconforto e má vontade para com as pessoas, chegando a ponto de afirmar que “preferia o cheiro de cavalo ao cheiro de gente”.
Se você for pegar esta frase ao pé da letra, pode ser que concorde com o general, pode ser que o cheiro de cavalo lhe seja mais agradável do que o de gente. O embaraço acontece porque ela, a frase, tem um sentido figurado, e aquele general cuidava de dirigir os destinos da nação.
Pois, então, o ano de 1980 despontava no horizonte, ano que seria marcado pelas mortes de famosos com Vinícius de Moraes, Hitchcock, Sartre, John Lennon. Foi também em 1980 que a primeira emissora de TV do país, a TV Tupi, fechou suas portas, faliu, talvez porque o “Ouro para o bem do Brasil”, arrecadado por Chateaubriand, o Chatô, logo após o Golpe de 64, também exauriu, secou.
Se você conhece tal história, sabe com o povo é bobo até onde não pode mais. Meu avô, Tertuliano Vasconcelos de Mattos, foi um dos que doou um par de alianças daquelas bem bojudas para a empreitada cívica. Se existir inferno – e eu coloco a frase no condicional em respeito aos não crentes – espero que esses aproveitadores da boa fé das pessoas lá estejam ardendo em chamas.
Nem bem começo a dissertar, vejo que esbarro num defeito crônico: o de escorregar para outras considerações. Meu propósito, aqui e agora, é falar de Eleutério de Mattos, estando ele ainda na flor de sua juventude. Vamos, então.
Eleutério era um dos muitos que se incomodavam com a falta de liberdade, mas – naquele início de 1980 – tinha planos de visitar sua irmã Abrilina, lá na cidade de Resende.
Foi isso que ele acertou com sua mãe, Leontina, e seu sobrinho, o Loló. A viagem seria dividida em três partes: primeiro, iriam até Lavras, onde pernoitariam; por volta das seis horas do dia seguinte embarcariam num trem até Barra Mansa; de Barra Mansa até Resende, ônibus.
Assim combinaram, assim fizeram. Loló, portador de uma memória de elefante, até hoje sabe o nome da pensão onde se hospedaram: Garrido, e que ficava, vamos dizer, na boca da estação ferroviária.
Às seis horas, já estavam acomodados num dos vagões de passageiros. A Maria-fumaça deu seu rugido, tossiu um pouco e, assim que ouviu o sino da estação tocar, começou a andar sobre os trilhos, a princípio lentamente, mas foi aumentando aos poucos os passos, até se estabilizar numa velocidade razoável para as condições de sua idade avançada.
As cidades começaram a aparecer e a desaparecer do cenário: Itumirim, Araltina, São Vicente, Mindurim... Em todas elas, o trem parava para receber novos passageiros e se abastecer de água e carvão. Em todas elas, um tanto de gente ficava junto aos vagões vendendo frutas.
Chegando em Andrelândia, era costume o trem entrar por um desvio e aguardar a passagem de um outro. Naquele dia, esse outro trem havia descarrilado, e a perspectiva era de uma demora ainda maior, já que mecânicos e reforços viriam de Ribeirão Vermelho para fazer o reparo.
Então, os passageiros desceram dos vagões e se encaminharam para a praça daquela pequena cidade e que ostentava, orgulhosa, num de seus morros, a imagem de um Cristo Redentor.
Eleutério, enquanto ajudava sua mãe a descer do vagão, olhou para o prédio da estação e, ao ver escrita numa tabuleta a palavra “Andrelândia”, sentiu que alguma coisa mexia na sua cabeça. Ele se sentiu estranho, como se tivesse dado um salto no tempo. Como que anestesiado, deu as mãos à sua mãe e ao sobrinho, enquanto se dirigiam a um bar da praça. Não reparou na placa que dizia “Bar do Beralda”.
Depois de se sentarem em cadeiras em torno de uma mesinha, Eleutério perguntou o que gostariam de comer e beber.
            - Eu me dou por satisfeita com um pão de queijo e um copo de café com leite – falou Leontina.
            - Eu quero dois pastéis e um refrigerante – disse Loló, com seus dois olhos grandes brilhando.
Um senhor moreno, “alto, forte, sacudido e troncudo” veio atendê-los com um sorriso largo no rosto.
            - Desculpe a liberdade – falou Eleutério, cheio de cuidados e depois de ter feito os pedidos. – Por acaso o senhor não conhece um morador daqui chamado Mário Cleber?
            - Cleber, Cleber... – ficou cismando o homem, enquanto coçava o queixo.
            - Cleber – tentou ajudar Eleutério: - um baixinho de óculos fortes, que estudou num seminário e hoje é psicólogo.
            - Ah, claro! – respondeu o homem. – Sei quem é, pois se até fomos colegas e amigos de escola! Ele agora está trabalhando em São José do Rio Preto.
            - É isto mesmo! – falou Eleutério, mal contendo sua alegria. – Mas qual é o seu nome, já que conhece tanto o Cleber?
            - Meu nome é Jorge Beralda e sou o dono deste bar.
Eleutério quase caiu de costas. Logo o Beralda que cometia bullying com o Clebinho, quando esta palavra nem existia ainda!
– Mas não é bem isto que Cleber me contou. Ele disse que você aprontava todas na escola e roubava sua merenda de pão com salame.
Jorge riu tanto que quase se engasgou. Depois, contemporizou:
            - Naqueles tempos a gente não tinha muito juízo mesmo. Mas eu roubei a merenda do Clebinho só por um tempo.
            - É verdade. Você só parou por causa do Dirceu, filho do Chico Padeiro, ter perdido parte do braço na máquina da padaria. Aí o Cleber, toda vez em que você ameaçava tomar-lhe o pão, fazia questão de lembrar que ele era lá da padaria do Chico e ainda podia conter pedacinhos do braço do Dirceu...
            - Eca... – falou Jorge Beralda, ameaçando um vômito. – Mas, voltando à nossa prosa, de onde conhece o Cleber?
Eleutério ficou engasgado com a pergunta. Como responder que conhecia Cleber de trinta e dois anos depois, em 2012? Tentando desconversar, perguntou:
            - Tem notícia de Ceci e de Chico Sete-Boias?
            - Puxa, também sabe deles? Ceci foi tentar a sorte como traveca lá em São Paulo; já o Chico, coitado, bateu as botas, partiu desta. Parece que por causa de uma congestão brava, ele que devia ter a barriga furada.
Enquanto Jorge alongava as explicações, Eleutério tentava achar um meio de fazer chegar ao amigo o aviso de um risco que iria correr trinta e cinco anos depois, em 2015, quando um mosquito da dengue iria picá-lo, levando-o à morte.
Eleutério queria mudar o rumo da História, mas não encontrava meios, não sabia como. Jorge Beralda olhava para ele desconfiado.
Enquanto tentava encontrar um jeito de falar a verdade sem passar por doido, Eleutério viu que a tarde estava caindo. Foi quando o guarda da estação veio avisar que o trem não iria demorar a partir. Ele estava de uniforme preto e, estranhamente, com uns óculos escuros. Trazia na mão uma lanterna. Quando o foco de luz foi projetado nos olhos de Eleutério, tudo aconteceu como se uma borracha estivesse sendo passada nas suas lembranças do futuro. Estranhamente, o último pensamento que teve, então, foi aquela máxima árabe: Maktub!
Depois disso, de mãos dadas, Leontina, Eleutério e Loló voltaram para o vagão. O trem resfolegou, engasgando-se com a fumaça, deu um longo apito e partiu. No alto do morro e de costas, o Cristo Redentor foi se perdendo lentamente no horizonte.
Nota: Jorge Beralda, Chico Sete-Boias e Ceci são personagens do livro Ceci e Chico Sete-Boias & Outros Casos, de Mário Cleber da Silva.
Etelvaldo Vieira de Melo

1 comentários:

Unknown disse...

AMIGO É COISA PARA SE GUARDAR A SETE CHAVES ... EU SEI O APREÇO QUE CLEBINHO TINHA POR VOCES ... e eu transfiro meu AMOR PARA VOCES.

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