NOVA CONVERSA COM DOUTOR FÁBIO GIKOVATE

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              O texto a seguir dá continuidade ao que foi postado semana passada. Na verdade, trata-se de uma produção anterior ao artigo do Dr. Fábio Gikovate, “Individualismo não é Egoísmo”, no qual me inspirei para realizar a “entrevista”. Gostei do formato de diálogo, que ajuda na precisão dos conceitos e no desenvolvimento do tema. Estou repetindo a experiência, inclusive contando com a inestimável ajuda do Dr. Gikovate. Tamanha ousadia, já disse, se deve ao tempo que, entre outros atributos, faz com que me torne cada vez mais atrevido.
            A compreensão de um texto requer, além da análise e da interpretação, um comentário ou contextualização. Pois bem, a necessidade de refletir sobre o Egoísmo decorre da observação de uma pessoa próxima, que disse ser eu um egoísta.
            Pensei comigo mesmo: Sou mesmo? Enquanto pensava, observei que a pessoa em questão contemporizava, com um leve tom de censura na fala: “Somos todos egoístas!”.
            Refletindo, vi que não havia tanto motivo para preocupação ou para recriminação. Se somos ou se deixamos de ser egoístas, não vem tanto ao caso; se existe um “x” da questão, algo do qual não podemos fugir, trata-se justamente desse compromisso com a Verdade. O Egoísmo não é tanto problema (veremos que se trata de caminho para solução); ser mentiroso é que machuca e faz mal.
            Para a entrevista, conto com as perguntas formuladas pelo Dr. Gikovate (FG). Todas elas têm por base o texto que produzi, após refletir longamente sobre o tema.
            FG: Para início de conversa, vamos precisar os conceitos?
            ET: Perfeitamente. Grosso modo, os termos Egoísmo, egoísta, Individualismo e individualista apresentam as mesmas notas negativas. Querem falar do indivíduo que só pensa em si, que – nas relações com os outros – só visa o interesse próprio, apropriando-se de tudo que lhe falta, sem se preocupar em dar qualquer tipo de apoio ou ajuda. Ele, o egoísta, é tachado de explorador, parasita, oportunista, sanguessuga.
            FG: Como você quer tratar os termos?
            ET: Vou levar em consideração apenas dois: Egoísmo e egoísta. O termo “Egoísmo” se desdobra em “ego” + “ismo” e, nesta morfologia, significa: busca, ida, caminhada para o ego, para o eu. Deste modo, Egoísmo significa o indivíduo voltar-se para si mesmo, procurar sua identidade própria, eventualmente, apropriando-se de tudo aquilo que possibilita o encontro consigo mesmo.
            FG: Já o termo “egoísta”...
            ET: Ele representa uma patologia, uma doença, a prática exacerbada do Egoísmo. O Egoísmo pode contribuir para que existam egoístas, mas não é o fator determinante para tal, já que este vem a ser uma falha da personalidade, uma carência emocional e afetiva.
            FG: Ou seja...
            ET: O Egoísmo é um meio, uma estrada que leva a um fim (o eu); o egoísta é aquele que fica na estrada e não consegue chegar ao fim. Na busca de nossa identidade, precisamos do Egoísmo, mas não podemos nos tornar pessoas egoístas.
            FG: Por que não podemos nos tornar egoístas?
            ET: Porque, tornando-nos egoístas, ficamos presos no caminho, impedidos de “voar” (numa alusão ao livro/filme Fernão Capelo Gaivota), isto é, de conquistar a “Liberdade”, que é o fim da ação de Egoísmo.
            FG: O que é e o que representa a “Liberdade”?
            ET: A Liberdade é aquele algo essencial de nossas vidas. Nascemos não para a prática do bem, para o amor ao próximo, para amar a Deus, mas nascemos para construirmos nossa Liberdade. A Liberdade é a essência do viver. Por isso, nossa tarefa deve ser esse esforço permanente de libertação, de rompimento das amarras que nos subjugam aos outros e nos tornam objetos, coisas. Liberdade é a afirmação do sujeito, do eu, do ego, em ação de ego-ísmo. Em outras palavras, a Liberdade significa essa busca de autoconhecimento, com o indivíduo tomando conta de sua existência, buscando cuidar de si mesmo. Essa ação de Egoísmo, de cuidado, de tomar conta, de não deixar para os outros, de afirmação, de ruptura, não é algo fácil, mas de muita dor. Um exemplo ilustrativo é o da criança que nasce e chora. Essa ação de libertação vai nos acompanhar por toda a vida.
FG: Você diz que a Liberdade nos possibilita “tudo”. O que esse “tudo” quer dizer?
            ET: É a Liberdade que nos possibilita “viver”, fazer escolhas, tomar decisões. Ela nos abre um leque de possibilidades, e essas possibilidades representam esse “tudo” que falo. Mas eu considero alguns aspectos que são mais expressivos.
            FG: Por exemplo...
            ET: A minha relação com o outro não se dará simplesmente por razões de troca, por fundamentos morais ou de natureza religiosa. Tais motivações até poderão existir, mas não serão as determinantes principais; o que irá prevalecer será minha escolha livre e consciente. É por isso que uma ação livre é sempre prazerosa, embora represente também um risco, e cujas consequências tenho que assumir.
            FG: Você julga a Liberdade uma porta de entrada para o amor, o altruísmo?
            ET: Ela não é uma porta, ela é “a porta”. Só ama verdadeiramente quem é livre, só dispõe de si (só doa) quem é dono de sua vida. Eu não posso dizer que amo se não me possuo, e o amor só é amor quando expressão da Liberdade. Soa até engraçado dizer que, no fundo, preciso do Egoísmo para amar o outro.
FG: Como você situa a Liberdade sob a lógica capitalista?
            ET: O capitalismo não reconhece a Liberdade. A chamada “liberdade de mercado”, a livre concorrência, tudo isso é fantasia, engodo. O que o capitalismo estimula é a existência de pessoas egoístas, individualistas, seres mutilados, incompletos (é por isso que o capitalismo é tão frustrante: acumular, ter, práticas que levam a lugar algum). Solidariedade para o capitalismo é só uma forma de amenizar conflitos, torná-los toleráveis e suportáveis. As relações humanas para ele não se dão como formas de respeito, mas de dominação e exploração.
            FG: Em citação anterior, você faz referência à religião.
            ET: Sim. Uma religiosidade que não é fundada numa escolha livre dá margem a muitas fraudes, mentiras, usurpações. Eu não condeno a atitude de fé, mas quero que ela não seja ingênua, egoísta, comercial. Quer forma mais sofisticada de atitude egoísta do que o amor ao próximo, aquela caridade praticada em nome da religião? Não é ela um rebuscado comércio, onde se busca garantir a salvação a troco de trocados dados ao próximo? As orações, as preces chegam às raias do exagero de tanto “eu”, “me” e “para mim”.
            FG: Em sua fala, você enfatiza muito sobre a necessidade de se buscar a Verdade. O que isso representa?
            ET: Enquanto ser racional, o que sempre me motiva é a procura da Verdade. A propósito, não existe uma passagem bíblica que diz “Conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará”? Embora, em outra passagem, parece que não existe consenso sobre o assunto, pois Pilatos pergunta: “Afinal de contas, o que é a Verdade?”. De qualquer modo, a Verdade é um bem, o que faz mal e machuca é a pessoa mentir, enganando a si mesma.
            FG: E os princípios morais?
            ET: Eles nos são repassados pela cultura. Enquanto herança cultural, precisam ser analisados com cuidado. Representam o preço a ser pago pelo convívio social, aquela cota de segurança que nos é cobrada pelas regras de convivência. Na verdade, nas nossas relações com os outros, existem as normas sociais e os princípios, as normas morais. É esse conjunto que permite a convivência social. Muitas normas sociais se traduzem em forma de leis; desobedecê-las significa estar sujeito a sanções, penas, castigos. Já os princípios, as normas morais, aparecem como obrigações ou como deveres. Diante de uma obrigação moral, você pode aceitá-la, dizendo que se trata de uma obrigação; pode recusar, dizendo: - Eu não tenho responsabilidade com isso! Se você puder correr de uma obrigação moral, não irá pensar duas vezes.
FG: Já os deveres morais...
ET: Esses são complicados. Eles nos são repassados através da educação religiosa, da familiar, escolar ou nas relações afetivas e sociais. Muitos desses princípios ficam gravados em nossas consciências a ferro e fogo; então, desobedecê-los significa cair num profundo sentimento de culpa. Existem aqueles que carregam por toda a vida o sentimento de se sentirem culpados por um pequeno deslize cometido com alguém significativo em suas vidas.
            FG: Como um egoísta lida com as normas morais? E o indivíduo livre?
            ET: O egoísta é um aproveitador e um mentiroso. Concordo com sua fala, doutor, quando diz que ele é um fraco que usa da esperteza para enganar outras pessoas (pessoas generosas, que buscam aceitação, que carregam sentimento de culpa) e delas obter o que necessita. Assim, com simpatia, muita conversa e muita mentira, acaba ele enganando os outros e, mais sério, enganando a si mesmo. Tive um colega que era assim, um aproveitador. Quando íamos a uma churrascaria, por exemplo, na hora de dividir as despesas, ele se oferecia para fazer as contas; recolhia o dinheiro de todos, não pagava nada e, eventualmente, ficava com algum troco. Assim é o egoísta. Quanto ao indivíduo livre, é preciso considerar que a liberdade nunca é algo acabado e pronto. Trata-se de um processo de construção. O que quero dizer: não existe uma ação plenamente livre. Deste modo, enquanto construímos nossa liberdade estamos sujeitos a limitações, falhas. Isso não quer dizer que iremos abrir mão de nosso compromisso de autenticidade. Seremos assertivos, não regulados por motivações de trocas “justas” – como quer a visão individualista – mas em ações flexíveis, onde poderemos ceder em aspectos menores, sem abrir mão dos referenciais de autenticidade, visão crítica, honestidade, amadurecimento próprio e ajuda leal para os outros, de modo que sejam eles também sujeitos de suas ações e amadureçam como seres humanos.
            FG: Relacionando sua reflexão sobre Liberdade e Egoísmo com o meu texto, onde falo que Individualismo não é Egoísmo, o que tem a dizer?
            ET: Considero que o Egoísmo não implica necessariamente no ser egoísta; que o Egoísmo se constitui o caminho para a construção da Liberdade; que seu conceito de Individualismo, doutor, esbarra numa barreira quase intransponível, quando trata das relações interpessoais. Considero que o conceito de Liberdade, ao contrário do Individualismo que aponta tão só para relações “justas”, pode pedir como desdobramento, o amor, o altruísmo, os valores e a abertura para o transcendente. Assim, é a Liberdade que torna possível amar (e, ocasionalmente, levar “desvantagens”, “tomar prejuízo”, “levar desaforo”), é a Liberdade que reconhece os autênticos valores, que pode levar à fé, que escolhe viver.
            FG: Bom, chegamos ao fim de mais uma conversa.
            ET: Muito obrigado, Doutor Fábio Gikovate.
Etelvaldo Vieira de Melo
            

2 comentários:

Maria Solange Amado Ladeira disse...

Cadê a terceira entrevista? Estou esperando...

Fátima Fonseca disse...

amigo Etelvaldo, que aula hem? Parabéns!!!

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