ME ENGANA, QUE EU GOSTO

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Imagem: gilsonaguiar.com.br
Nas trocas de mensagens entre participantes de grupos de redes sociais, três ideias me ocorrem com frequência.
A primeira é a desconfiança de que podem estar tendo um “diálogo de surdos”. Você já viu dois surdos discutindo sem ao menos recorrerem ao código de sinais? Um fala, o outro fala, mas nenhum escuta o que estão a dizer. Ao final, fica tudo do mesmo tamanho.
- Fulano, você está indo pescar? – diz sicrano, vendo o outro com embornal e vara ao ombro.
-  Não, compadre – responde o fulano. – Eu estou indo pescar.
- Ah! – arremata o sicrano. – Pensei que você estivesse indo pescar.
Nas conversas e trocas de mensagens dos zap-zaps, se não tivermos a disposição de escutar o outro, com a humildade de reconhecer que ninguém é dono absoluto da verdade, estaremos perdendo tempo, jogando conversa fora, fazendo “chover no molhado”.
A segunda ideia que me ocorre: é preciso ter cuidado com as palavras. Elas podem ser mentirosas, falsear a verdade. Nessa altura do jogo político no qual o país se vê envolvido, os candidatos às eleições falam bonitinho, orientados por marqueteiros profissionais (capazes de induzir o eleitor distraído a comer até caco de vidro e arame farpado). Portanto, não é bom considerar somente o que dizem agora; é preciso levar em conta o que falaram no passado, não só por palavras, mas também por atitudes e omissões.
Está acompanhando meu raciocínio?
A terceira ideia: não é pelo fato de concordar com alguma coisa que outro diz que devo concordar com tudo o que ele diz. Por exemplo, é fácil criticar a situação do país; agora, o importante e mais difícil é propor soluções adequadas e inteligentes que atendam aos interesses da maioria, e não somente aos de uma casta de privilegiados.
É atribuída a Mark Twain a frase “é mais fácil enganar pessoas que convencê-las de que foram enganadas”. Esta frase vai de encontro a uma outra, de domínio público: “me engana, que eu gosto”. De fato, ninguém chega a ser totalmente enganado por outro; quando alguém me convence de alguma coisa é porque, no fundo, aquilo já era aceito por mim, o outro só está sacramentando minha crença.
Exemplo, tirado da declaração de um desses frequentadores de redes sociais: “Podem falar o que quiserem, mas não mudo minha opinião sobre o juiz Sérgio Moro. Tenho comigo que ele tem razão, que está certo em suas decisões”. Tal pessoas terá por muito tempo os ouvidos tapados para críticas ao juiz Sérgio Moro, enquanto recebe com alegria as declarações elogiosas.
A seguir, vou enumerar alguns destaques de um texto que recebi num desses grupos sociais. Trata-se de uma defesa da candidatura de Jair Bolsonaro: “Para você entender o meu voto”. O que salta aos olhos é a quantidade de mentiras repassadas como se fossem verdades, tudo dentro daquela máxima do “engana, que eu gosto”, onde os fins querem justificar os meios.
- O meu candidato NÃO incomoda o cidadão de bem, a mãe e o pai de família.
O termo “cidadão de bem” é muito empregado hoje em dia. Começou a ser usado em 2013 para designar aquele que batia panela, em desfile junto à pata amarela, usando camisa amarela.
- O meu candidato incomoda traficantes, bandidos, assassinos, pedófilos e estupradores.
Sobre os estupradores, parece que não é bem verdade, se formos dar crédito ao que ele falou para a deputada federal Maria do Rosário: “Não te estupro porque você não merece” (quer dizer: se merecesse, estuprava?).
- O meu candidato não é a favor de cotas raciais, mas de cotas para os pobres, todos os pobres.
A expressão parece dizer assim: vamos falar que iremos dar cotas para todos e, assim, não ajudar ninguém. E mais: não nos interessa saber que o Brasil tem uma dívida histórica com os negros e os índios, que o país foi o último a abolir a escravidão, ela que durou 354 anos, que o racismo continua um estigma entre nós, mesmo a cota racial sendo prática em vários países (Índia, Malásia, África do Sul, Austrália, Nova Zelândia, Colômbia; até mesmo os Estados Unidos, que tanto idolatram, adotam um sistema de cotas raciais em processos de admissão universitária).
- O meu candidato numa foi contra homossexual.
Definitivamente, não faz sentido algum escrever uma coisa assim. A quem o autor do texto quer enganar? Estas palavras não são de seu candidato: “Prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí”? Torcedores atleticanos, no jogo entre Atlético e Cruzeiro, bradavam: “Ô cruzeirense, toma cuidado, o Bolsonaro vai matar viado”.
- O meu candidato não é contra mulheres.
Outra frase que não condiz com o perfil do candidato. Não foi ele quem lamentou ter fraquejado quando sua mulher deu à luz uma filha?
- O meu candidato vai dar “carta branca” pro policial combater vagabundos que nos oprimem dia após dia.
Está aqui uma das motivações sombrias dos eleitores de Bolsonaro. Nesse quadro de injustiça social em que vivemos, vai sair tiro pra tudo quanto é lado. Acho bom que os outros “cidadãos de bem”, os pacifistas, tenham o cuidado de uma blindagem, evitando as balas perdidas.
- Deus abençoe o nosso Brasil.
Para decorar o bolo, uma frase de efeito, que vem misturar “alhos com bugalhos”, religião e política.
O nome de Deus é coisa séria, não deve ser usado em vão, não deve servir de pretexto para justificar o ódio e a mentira, para induzir ao erro pessoas simples, crédulas, facilmente manipuláveis por causa da religião.
Infelizmente, é a isso que assistimos hoje: pessoas ditas cristãs usando discurso de ódio, pregando mentiras e levando pessoas simples ao erro.
Nesta eleição, é grande o número dos que se dizem cristãos, evangélicos, missionários. Seria um conforto saber disso em outros tempos. No entanto, agora, assusta e dá medo.
Kahlil Gibran disse que “nenhum homem poderá revelar-vos nada senão o que já está meio adormecido na aurora do vosso entendimento”. Minha tristeza é saber que este texto vai cair no vazio, será incapaz de sensibilizar aqueles que já se converteram ao ódio e à mentira.
Etelvaldo Vieira de Melo

1 comentários:

Fátima Fonseca disse...

Muito bom Etelvaldo!

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