PADIM CIÇO

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Imagem: culinaria.culturamix.com
Quando jovem, morei com alguns colegas no que chamávamos “República”. Toda tarde, invariavelmente, éramos assaltados por uma “fome canina” (expressão do tempo em que cão levava vida de cachorro). O que fazíamos, na maioria das vezes, era nos reunir em torno do fogão da casa para preparar o que chamávamos de “Padim Ciço”: aquele famoso mexido, feito com sobras do almoço, misturadas com ovo.
 Talvez por causa da fome, aquela “gororoba”, feita com raspas das panelas, tinha um sabor especial. Quando íamos dormir depois, estávamos tomados por um sentimento de beatitude e paz.
Algo semelhante acontece comigo nos últimos anos, por causa do compromisso de produzir semanalmente um texto para publicação no blog. Como nem sempre disponho de um texto acabado, tenho que recorrer a fragmentos, raspas de produções passadas. Juntando alguma coisa daqui e outra dali, tento produzir algo que faça sentido. Se sinto que a liga não funcionou, o produto vai para a lixeira.
O texto de hoje é algo assim. Espero que goste desse “Padim Ciço”, que essa gororoba lhe desça bem. E que, depois, mais tarde, vá dormir tomado de sentimento de beatitude e de paz.
UM VIZINHO
A rua onde moro é pequena, só tem um quarteirão. Por isso, ali todo mundo conhece todo mundo. Sendo assim, sei que, a seis casas acima da minha, quase na esquina com a avenida principal do bairro, mora um senhor, sua esposa e um filho. (Havia também uma filha, mas ela casou e foi morar em outra cidade. O filho, já um rapaz, infelizmente padece de problema mental.)
Esse senhor, que vamos chamar de José Fatiota, trabalhou a vida toda com contabilidade. Está agora aposentado. Por isso, pode se dedicar a fazer coisas que lhe dão prazer, junto aos desprazeres que a idade e o tempo acarretam.
Assim, ele se dedica à música: aprendeu a tocar flauta e, nos últimos tempos, formou uma banda, junto com dois amigos, onde “ataca” de baterista.
Outro dia, indo fazer uma tradicional visita ao Sacolão Gigante (“gigante no tamanho, mas baixinho no preço”), tendo que me sujeitar ao tradicional cumprimento do baixinho seu dono (“como vai, patrão?”), passei em frente ao bar de um libanês, bar que fica na avenida, quase na esquina da rua de casa. Foi então que vi José Fatiota e seus dois parceiros se preparando para uma “música ao vivo”. Pensei com meus botões: - Na volta do sacolão, vou parar aqui um pouco para prestigiar o vizinho.
Quando voltei, fui sentar no banco de uma guarita de ônibus, quase em frente ao bar. O que ouvi, devo confessar, me deu “calo nos ouvidos”. Achei a banda bem fraquinha: o vocalista cantava parecendo ter engolido um prego, o guitarrista não entusiasmava, o repertório era pobre. Quem se salvava mesmo era José Fatiota, dando uns repiques na bateria, acordando de susto a plateia.
Depois de “ouvir” umas três músicas, rumei para casa com sentimento de frustração. Afinal, botava fé no Zé, achava que sua banda tivesse um pouco de qualidade.
Foi quando passei em frente ao portão de sua casa. Vi que seu filho estava junto ao muro, cantando e dançando feliz, embalado pela música que ali chegava bem límpida.
Eu, que já pensava em espalhar aos quatro ventos a ruindade da banda de José Fatiota, engoli em seco e pensei:
- Nunca devemos considerar que nossos juízos possam ser absolutamente certos. Afinal, a beleza das coisas está nos olhos de quem vê (ou nas “zorelhas” de quem escuta).
Etelvaldo Vieira de Melo

1 comentários:

Fátima Fonseca disse...

Respingos do cotidiano. Bela crônica!
Ah também já comi muito mexido de sobras qdo morei em república.

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