A MOÇA DO PIERCING DE LATÃO

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Imagem: tatuagenshd.com
Eleutério chegou a um ponto da vida que os desavisados chamam de melhor idade. Sendo assim, seus quilômetros rodados já são muitos, seu motor até já passou por retífica. Serviços de lanternagem ele não chegou a fazer: sua lataria apresenta amassados em vários lugares; sua pintura está desfigurada e os pneus estão, literalmente, carecas (qualquer escorregão é tombo certo).
Como aposentado, poderia estar com o burro amarrado na sombra, expressão que quer dizer: uma vida abonada e que, no Nordeste brasileiro, chamado de Paraíba pelo imprudente, recebe o nome de estribado. No entanto, tal hipótese só pode ser aventada para alguns, os da chamada elite – rol do qual ele nunca fez parte.
Como aposentado, Eleutério só sai de casa uma vez ou outra; normalmente ele satisfaz suas necessidades no bairro onde mora, com compras no Supermercado* (aquele que tem sempre um pertinho de você), na Panificadora** (de preço caro, mas de pão palatável, de pouco bromato) e no Sacolão*** (grande no tamanho, mas pequeno no preço). Quando vai à cidade, é para atender exigências ocasionais, como fazer compras no Mercado Central (ingredientes para a regular vitamina matinal: quinoa, semente de linhaça, chia, aveia – sem glúten, castanha do Pará) ou repor medicamentos na Drogaria¨¨ (Diltiazem 60, Somalgim 100, Timolol 0,5%, Sinvastatina 20, Losartana 25).  Vez ou outra, sai para consultas médicas ou compras.
(Se quer saber por que dá conta de sua vida com essa profusão de detalhes, ele explica: já que os aplicativos de Internet invadiram de vez sua privacidade, resolveu radicalizar e cair no domínio público; agora, sua vida é um livro aberto.)
Desta vez, ele está indo dar continuidade a um tratamento dentário, ocasionado pela perda de um dente e que foi provocada por uma bendita granola. Coisa desagradável, mas nada comparável com o que deve ter passado o deputado e pastor Marco Feliciano, que teve que desembolsar 157 mil com seu tratamento (valor “doado” pelo povo brasileiro, inclusive pelo assalariado, que teria que trabalhar 157 meses ou 13 anos, para dispor de tanto).
Quando chegou na estação MOVE, um ônibus já estava de saída. Eleutério entrou no veículo assim mesmo, com risco de ter de viajar em pé. Dito e feito. O ônibus estava cheio, e ele se ajeitou próximo a dois assentos preferenciais (“Para obesos, gestantes, pessoas com bebês ou crianças de colo, idosos e pessoas com deficiência” – dizia o cartaz afixado junto à vidraça do veículo). Os assentos estavam ocupados por duas mulheres: uma moça sentada na cadeira do canto, entretida com um aparelho celular, com os braços cobertos de tatuagens e com piercing no lábio inferior), e uma outra, sentada na cadeira externa, de pele clara e ostentando mais idade.
Logo que o ônibus começou a rodar, a ruiva se levantou. Eleutério pensou que ela ia descer no ponto mais próximo, mas não, ela estava oferecendo o lugar. Eleutério agradeceu a oferta. A mulher se justificou, dizendo:
- Eu fico constrangida se você não aceitar.
- Pode ficar tranquila, eu estou bem.
Enquanto isso, a moça de piercing e tatuagem nem “tchum”, ficou na dela, entretida com o celular, assistindo a um vídeo sobre maquiagem.
Depois de insistir por várias vezes, se oferecendo para levar a bolsa de Eleutério, a ruiva fechou os olhos, fingindo dormir.
Enquanto a viagem prosseguia, com o ônibus MOVE se deslocando feito minhoca por longas avenidas, Eleutério ficou pensando:
- Daqui a alguns anos, quando essas duas atingirem também a “melhor idade”, tenho quase certeza que, passando por uma situação igual a esta que experimento (ficando em pé diante de assentos preferenciais ocupados por pessoas mais jovens), teremos dois tipos diferentes de reação: 1) a ruiva ficará calada, até mesmo recusando com delicadeza, caso alguém lhe ofereça o assento; 2) a morena de piercing de latão irá aprontar o maior “barraco”, esbravejando pra todo mundo ouvir que o direito de assentar é dela, que é um absurdo alguém tomar seu lugar.
Eleutério, ao fazer tais conjecturas, está estendendo ao longo do tempo os efeitos da educação e de sua falta. Certamente ele não estará aqui para ver essa história, mas pede para deixar registrada sua premonição: enquanto os Marco Felicianos “metem a mão” no dinheiro público, a educação no país fica cada vez mais jogada às traças.  Tempos sombrios estão à espera de nossos filhos.
Etelvaldo Vieira de Melo

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