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Circula na Internet um vídeo onde alguém disserta sobre a questão
colocada acima. Ele me foi repassado por um vizinho.
Tal vizinho, ao longo do tempo, tornou-se um amigo. Entre suas
qualidades, posso destacar a honestidade, sua disponibilidade em ajudar os
outros e seu senso de humor. Diante de uma situação difícil, costuma dizer,
enquanto ri: “É complicado!”.
Nos últimos tempos, tenho notado algumas mudanças em seu comportamento
com as quais não concordo. Não sei se por influência do grupo religioso do qual
faz parte, não sei se por opção ideológica, o certo é que ele tem me repassado
textos e vídeos que afrontam minha visão do mundo, da sociedade e da própria
religião. Quero dar conta de que toda essa mudança se deve a influência de
terceiros, motivada por razões religiosas, ele que sempre demonstrou um
profundo sentimento de religiosidade.
No vídeo desta semana, as primeiras palavras do apresentador foram: “Boa tarde. Será que Deus aprova a Esquerda?”
Numa primeira reação, quis apagar aquilo, julgando não ser honesto uma
pessoa se propor refletir sobre determinado tema, partindo de um pré-conceito,
de uma dúvida (“Será...”). Depois, pensei que seria melhor analisar aquela
fala, buscando seus fundamentos. Quem sabe, teríamos ali uma argumentação
consistente, baseada em razões verdadeiras. A tese proposta era:
“Deus não aprova a Esquerda”. A partir daí, o autor deveria enumerar as razões
que fundamentam tal assertiva.
Elas foram de duas naturezas: a primeira, baseada em proposições
lógicas, racionais; a segunda, com base em citações bíblicas, apela para a fé.
Vejamos os primeiros fundamentos. Diz o discursador: “Quando a gente analisa, vê que a Esquerda
só quer o que não presta: é aborto, legalização de droga, pedofilia, e por aí
vai. Fizeram o que fizeram”.
Ele disse isso e pronto. Essas são as “provas” racionais de que Deus
não aprova a Esquerda, ela sendo um saco de maldades, que só faz o que não
presta, inclusive defendendo a pedofilia.
O termo “esquerda” aparece ao longo da fala do locutor com sentidos
diferentes. Nesse primeiro caso, é evidente que ele só pode estar se referindo
a uma ideologia. Como tal, é bom lembrar que o termo surgiu pela primeira vez em
1789, durante a Revolução Francesa. “Esquerda” e “Direita” eram usados para
designar aqueles que se sentavam à esquerda e à direita nas assembleias: os que
eram leais à religião oficial e ao rei, ficavam sentados à direita; os que eram
contra, à esquerda.
Quando a Assembleia Nacional foi substituída em 1791 por uma Assembleia
Legislativa, os “inovadores” sentavam-se do lado esquerdo, os “moderados”
reuniam-se no centro, enquanto que os “defensores da Consciência da
Constituição” encontravam-se sentados à direita.
Temos hoje várias ideologias políticas, tanto de Esquerda quanto de
Direita. Grosso modo, aquelas priorizam o social, enquanto que essas cuidam mais
do indivíduo particular; umas querem o Estado forte, para atender especialmente
as minorias; outras, que o Estado diminua, deixando o controle nas mãos do
livre mercado. Porque Esquerda e Direita são termos de grande abrangência, não é
honesto rotular de “comunista" todo aquele que é de Esquerda; do mesmo
modo, é desonesto dizer que todos os de Direita são “fascistas”. No entanto, a
desinformação no Brasil é tanta, que “liberais” são chamados de “comunistas”só porque defendem a Constituição e o Estado de Direito.
Quando enumera as razões ditas de fé, o orador emprega os termos
"esquerda” e “direita” com o mesmo sentido político, desconhecendo que
foram assim aplicados muitos séculos depois que a Bíblia foi escrita.
“Agora, vamos para a Bíblia, vamos pegar
uma resposta do Livro sagrado. Lá em Eclesiastes, 10-2, diz assim: ‘Porque o
coração do sábio se inclina para a direita, porém o do tolo se inclina para a
esquerda’.
Evidente que “esquerda” e “direita” aqui nada têm a ver com as “esquerdas”
e “direitas” das ideologias políticas. No entanto, é isso que o locutor quer dar
a entender. Misturando os sentidos, ele perde a
possibilidade de captar a mensagem verdadeira: “O coração do sábio se inclina
para o bem, mas o coração do tolo, para o mal”.
Depois de ver o autor enumerando passagens bíblicas que confrontam direita
e esquerda (por exemplo, o bom ladrão ao lado direito de Jesus na cruz), o que
posso dizer de sua fundamentação de fé? Simples: faltou em sua exegese
contextualizar as falas. Por causa desse erro fatal, cometido não sei se por
má-fé, não sei se por ignorância, chega a soar como aberração esta lembrança: “no Juízo Final, (Deus) salvará os da
direita ("Direita"), e aos da esquerda ("Esquerda") dirá: ‘Apartai-vos de mim, malditos, para o Fogo
Eterno’.
O desfecho do vídeo é proposto assim:
“Se eu fosse você meu amigo de Esquerda,
repensaria meus conceitos e mudaria de posição. Eu acho que a Esquerda não vai
ter vez nunca, vai se lascar, viu? Perdoe a minha expressão, não vejo Deus em
momento algum pendendo pro lado da Esquerda, haja visto que todo problema da
humanidade, do universo, começou por um partido de esquerda lá no Céu. Alguém
se posicionou na esquerda e foi expulso de lá, e hoje está na situação que
está. Eu, hein, se fosse você vazava da Esquerda!”
Estou tentando “enxugar” o texto o máximo possível, procurando deixá-lo
menos pesado. No entanto, não posso ficar sem mencionar duas coisas:
1) O autêntico religioso sabe que as escolhas políticas
são da responsabilidade da consciência de cada um.
Alguém já disse que existe uma miopia no meio dito
“evangélico” que leva os seguidores a satanizar tudo o que é classificado como
“esquerda”, ao tempo em que os cega para os males do capitalismo e do
individualismo exacerbado. Nesse universo estão os ingênuos, os de boa-fé, os
crédulos, os simplistas e os dogmáticos. Além desses, estão também os aproveitadores
e oportunistas, os desonestos, os exploradores, os lobos vestidos de cordeiros.
Especificamente sobre o vídeo analisado acima (quantos o viram? quantos
lhe deram crédito?), vale lembrar as palavras do Presbítero André Sanches, uma
de minhas referências na pesquisa sobre o tema: “Essa montagem que circula na Internet ou é uma espécie de brincadeira
irônica de provocação entre ‘direita e esquerda’, ou é uma manipulação de
alguém buscando ensinar o que a Bíblia não ensina, pois tira o texto de seu
contexto e insinua algo que o texto não diz originalmente. Por isso... tomemos
cuidado com o apoio que damos a produções como essa.”
2) Vivemos um momento conturbado no país, com o presidente e seus
asseclas espalhando mentiras e absurdos, com discursos
de ódio e de desprezo para com os menos favorecidos. Somando a isso, temos
declarações de pessoas que se dizem cristãs enchendo as cabeças de pessoas,
como a de meu vizinho e amigo, com palavras de preconceito e falsos juízos.
Numa hora assim, sou eu quem está a dizer: “- É complicado!”. Só que não estou
rindo. O que sinto é vontade de chorar.
Etelvaldo Vieira de Melo
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