SERÁ QUE DEUS APROVA A ESQUERDA?

Resultado de imagem para imagens de Deus condenando
Imagem: adcausam.com
Circula na Internet um vídeo onde alguém disserta sobre a questão colocada acima. Ele me foi repassado por um vizinho.
Tal vizinho, ao longo do tempo, tornou-se um amigo. Entre suas qualidades, posso destacar a honestidade, sua disponibilidade em ajudar os outros e seu senso de humor. Diante de uma situação difícil, costuma dizer, enquanto ri: “É complicado!”.
Nos últimos tempos, tenho notado algumas mudanças em seu comportamento com as quais não concordo. Não sei se por influência do grupo religioso do qual faz parte, não sei se por opção ideológica, o certo é que ele tem me repassado textos e vídeos que afrontam minha visão do mundo, da sociedade e da própria religião. Quero dar conta de que toda essa mudança se deve a influência de terceiros, motivada por razões religiosas, ele que sempre demonstrou um profundo sentimento de religiosidade.
No vídeo desta semana, as primeiras palavras do apresentador foram: “Boa tarde. Será que Deus aprova a Esquerda?”
Numa primeira reação, quis apagar aquilo, julgando não ser honesto uma pessoa se propor refletir sobre determinado tema, partindo de um pré-conceito, de uma dúvida (“Será...”). Depois, pensei que seria melhor analisar aquela fala, buscando seus fundamentos. Quem sabe, teríamos ali uma argumentação consistente, baseada em razões verdadeiras. A tese proposta era: “Deus não aprova a Esquerda”. A partir daí, o autor deveria enumerar as razões que fundamentam tal assertiva.
Elas foram de duas naturezas: a primeira, baseada em proposições lógicas, racionais; a segunda, com base em citações bíblicas, apela para a fé.
Vejamos os primeiros fundamentos. Diz o discursador: “Quando a gente analisa, vê que a Esquerda só quer o que não presta: é aborto, legalização de droga, pedofilia, e por aí vai. Fizeram o que fizeram”.
Ele disse isso e pronto. Essas são as “provas” racionais de que Deus não aprova a Esquerda, ela sendo um saco de maldades, que só faz o que não presta, inclusive defendendo a pedofilia.
O termo “esquerda” aparece ao longo da fala do locutor com sentidos diferentes. Nesse primeiro caso, é evidente que ele só pode estar se referindo a uma ideologia. Como tal, é bom lembrar que o termo surgiu pela primeira vez em 1789, durante a Revolução Francesa. “Esquerda” e “Direita” eram usados para designar aqueles que se sentavam à esquerda e à direita nas assembleias: os que eram leais à religião oficial e ao rei, ficavam sentados à direita; os que eram contra, à esquerda.
Quando a Assembleia Nacional foi substituída em 1791 por uma Assembleia Legislativa, os “inovadores” sentavam-se do lado esquerdo, os “moderados” reuniam-se no centro, enquanto que os “defensores da Consciência da Constituição” encontravam-se sentados à direita.
Temos hoje várias ideologias políticas, tanto de Esquerda quanto de Direita. Grosso modo, aquelas priorizam o social, enquanto que essas cuidam mais do indivíduo particular; umas querem o Estado forte, para atender especialmente as minorias; outras, que o Estado diminua, deixando o controle nas mãos do livre mercado. Porque Esquerda e Direita são termos  de grande abrangência, não é honesto rotular de “comunista" todo aquele que é de Esquerda; do mesmo modo, é desonesto dizer que todos os de Direita são “fascistas”. No entanto, a desinformação no Brasil é tanta, que “liberais” são chamados de “comunistas”só porque defendem a Constituição e o Estado de Direito.
Quando enumera as razões ditas de fé, o orador emprega os termos "esquerda” e “direita” com o mesmo sentido político, desconhecendo que foram assim aplicados muitos séculos depois que a Bíblia foi escrita.
“Agora, vamos para a Bíblia, vamos pegar uma resposta do Livro sagrado. Lá em Eclesiastes, 10-2, diz assim: ‘Porque o coração do sábio se inclina para a direita, porém o do tolo se inclina para a esquerda’.
Evidente que “esquerda” e “direita” aqui nada têm a ver com as “esquerdas” e “direitas” das ideologias políticas. No entanto, é isso que o locutor quer dar a entender. Misturando os sentidos, ele perde a possibilidade de captar a mensagem verdadeira: “O coração do sábio se inclina para o bem, mas o coração do tolo, para o mal”.
Depois de ver o autor enumerando passagens bíblicas que confrontam direita e esquerda (por exemplo, o bom ladrão ao lado direito de Jesus na cruz), o que posso dizer de sua fundamentação de fé? Simples: faltou em sua exegese contextualizar as falas. Por causa desse erro fatal, cometido não sei se por má-fé, não sei se por ignorância, chega a soar como aberração esta lembrança: “no Juízo Final, (Deus) salvará os da direita ("Direita"), e aos da esquerda ("Esquerda") dirá: ‘Apartai-vos de mim, malditos, para o Fogo Eterno’.
O desfecho do vídeo é proposto assim:
“Se eu fosse você meu amigo de Esquerda, repensaria meus conceitos e mudaria de posição. Eu acho que a Esquerda não vai ter vez nunca, vai se lascar, viu? Perdoe a minha expressão, não vejo Deus em momento algum pendendo pro lado da Esquerda, haja visto que todo problema da humanidade, do universo, começou por um partido de esquerda lá no Céu. Alguém se posicionou na esquerda e foi expulso de lá, e hoje está na situação que está. Eu, hein, se fosse você vazava da Esquerda!”
Estou tentando “enxugar” o texto o máximo possível, procurando deixá-lo menos pesado. No entanto, não posso ficar sem mencionar duas coisas:
1) O autêntico religioso sabe que as escolhas políticas são da responsabilidade da consciência de cada um.
Alguém já disse que existe uma miopia no meio dito “evangélico” que leva os seguidores a satanizar tudo o que é classificado como “esquerda”, ao tempo em que os cega para os males do capitalismo e do individualismo exacerbado. Nesse universo estão os ingênuos, os de boa-fé, os crédulos, os simplistas e os dogmáticos. Além desses, estão também os aproveitadores e oportunistas, os desonestos, os exploradores, os lobos vestidos de cordeiros.
Especificamente sobre o vídeo analisado acima (quantos o viram? quantos lhe deram crédito?), vale lembrar as palavras do Presbítero André Sanches, uma de minhas referências na pesquisa sobre o tema: “Essa montagem que circula na Internet ou é uma espécie de brincadeira irônica de provocação entre ‘direita e esquerda’, ou é uma manipulação de alguém buscando ensinar o que a Bíblia não ensina, pois tira o texto de seu contexto e insinua algo que o texto não diz originalmente. Por isso... tomemos cuidado com o apoio que damos a produções como essa.”
2) Vivemos um momento conturbado no país, com o presidente e seus asseclas   espalhando mentiras e absurdos, com discursos de ódio e de desprezo para com os menos favorecidos. Somando a isso, temos declarações de pessoas que se dizem cristãs enchendo as cabeças de pessoas, como a de meu vizinho e amigo, com palavras de preconceito e falsos juízos. Numa hora assim, sou eu quem está a dizer: “- É complicado!”. Só que não estou rindo. O que sinto é vontade de chorar.
Etelvaldo Vieira de Melo

0 comentários:

Postar um comentário