I GIORNO DELL'IRA!I

Inocêncio Coitadinho Sossegado de Oliveira não era o que poderíamos chamar de indivíduo arrogante e exigente. Pelo contrário, a vida e uma educação puritana, espartana, franciscana, atleticana, haviam lhe ensinado a ser comedido, a se contentar com pequenas alegrias e vitórias, mesmo que não levassem à conquista de títulos de expressão.
         Por tudo isso, eu – diretor geral da Agência de Investigação R&R – diante do surto de agressividade do qual foi acometido, fiz questão de me envolver pessoalmente, pedindo-lhe uma transcrição dos fatos, cuja parte relevante está exposta resumidamente a seguir, em conjunto com as hipóteses explicativas:

“... Uma coisa que fiquei sabendo depois e que não sabia antes: a Toscana é uma província da Itália, o que corresponde a um estado brasileiro.
            Quando você entra no espaço aéreo italiano, recebe uma amostra do que lhe espera naquele país: você é dedetizado, como se fosse um cachorro vira-lata, infestado de pulgas e carrapatos. Você, que recebeu uma orientação médica de não levar desaforo para casa, anota em sua agenda aquele fato, para o devido troco, acrescido de juros e correção monetária.
            A Toscana fica na região central da Itália e possui várias cidades famosas: Veneza, com sua Piazza San Marco e ameaçada de submergir qual Atlântida, Verona, com a Casa Giulietta, uma bobagem, mas onde você tem a possibilidade de posar para uma foto apertando seu busto, Pádua, uma referência para as mocinhas casamenteiras, que amarram a imagem de Santo Antônio pelos pés e o afogam numa jarra d’água, Pisa (e não pizza) com sua Torre pendente naquele eterno cai-não-cai.
            A capital da Toscana se chama Florença, Firenze em italiano. Lá tem um time de futebol chamado Fiorentina e onde jogou, se não me falha a memória, o brasileiro Sócrates, aquele mesmo sobre quem, ainda atleta do Corinthians, o presidente Vicente Matheus dizia: “O Sócrates é inegociável, invendável e imprestável”. Sócrates morreu em decorrência de uma doença séria, nem sempre levada em conta, chamada “timidez”. O alcoolismo foi mais uma decorrência.
            Em Florença, você tem a possibilidade de conviver com a grosseria e a má-educação do povo italiano, ora numa lanchonete, ora numa casa comercial, ora num restaurante. Se possuir fluência em italiano, é hora de dar o troco, dizer poucas e boas para aquela gente. Você se pergunta qual a serventia de uma fabulosa herança cultural para quem não dispõe de um mínimo de educação. Se você é monoglota, pode retornar ao Brasil (se for o caso) e arquitetar uma vingança onde irá atirar numa coisa e matar outra: como Firenze é a capital da Toscana, você abdica de comprar um vinagre e um pão de forma com os nomes da cidade e da província...”
           
           Depois de ler o relatório, não resisti à curiosidade e perguntei:
            - Por que tanto veneno?  E Roma, não vale nada?
            - Está bem, Roma acalma os nervos, é um colírio para as vistas cansadas... e esvazia os bolsos. Trata-se de uma cidade com uma arquitetura indescritível; ali, a gente respira o ar da história! (Também achou esta tirada fenomenal? Estou precisando de um termômetro para verificar uma suspeita de insolação). Sim, tem o Coliseu, a Fontana di Trevi, o Vaticano é lindo, a Basílica de São Pedro nem se fala, mas é preciso cuidado com os padres e suas proximidades. É lá que você pode ser esfolado vivo!
        Deixando de lado as divagações e retomando o fio da meada, senti meu instinto – apurado ao longo de anos de profissão – dizer que eu deveria analisar os acontecimentos ocorridos durante o voo. Por isso, perguntei a Inocêncio:
            - O que você fez de especial durante o voo?
            - Bem - respondeu ele – com o fone de ouvido ligado, inicialmente, ouvi algumas músicas.
            - Você destacaria alguma?
            - Sim, lembro-me bem de “I giorno dell’ira”, com Riz Ortoloni e Orquestra, tema do filme homônimo, estrelado por Giuliano Gemma e Lee Van Cleef.
            - Hummm... – resmunguei. – Mais alguma coisa?
            - Logo depois, fui assistir a um filme, “Um Dia de Fúria”, estrelado por Michael Douglas.
            - Hummm... – resmunguei novamente.
            - Assim que terminou o filme, retomei a leitura de “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco.
            - Trata-se daquele romance que descreve uma série de mortes misteriosas, decorrentes de envenenamentos, não é isso? – perguntei, querendo mostrar erudição e não ser passado para trás.
            Nem mesmo esperei a resposta para emendar, em seguida:
       - Meu caro Inocêncio. Você teve o que especialistas chamam de SCA (Síndrome de Compressão Auditiva), ocasionada pela altitude do vôo e associada à audição de “I giorno dell’ira”. Teve também o que chamam de TPV (Trauma de Pânico Visual), com o filme “Um Dia de Fúria”, a FIG (sigla inglesa para designar a ingestão de gases durante o processo de dedetização), além da CAC (Congestão por Alimento Contaminado). Se o sentido do tato tivesse sido afetado, as consequências poderiam ser fatais. A propósito, como se sentiu após o serviço de lanche?
          - Puxa, eu me senti muito mal. Eu não suportava de tanto gás (estou me referindo, agora, ao de flatulência); se não estivesse preso em um avião, sairia voando pelo espaço, tal qual um balão ou foguete. Mas me explica uma coisa, senhor investigador: por que esse surto de agressividade foi acontecer mais em Florença?
         - Ora – retruquei, com um sorriso irônico – como você sabe, Florença é a terra natal de Dante Alighieri e aquele dia, quem sabe, era dedicado à primeira parte de sua Divina Comédia, o Inferno! Portanto, estando tudo explicado, seria bom que você acalmasse seu instinto assassino, passando uma borracha em todo seu desejo de vingança.
  Etelvaldo Vieira de Melo


1 comentários:

´Mário Cleber disse...

Para piorar seu estado de espírito sugiro o livro "Inferno" de Dan Brown. Cerca de 600 páginas de leitura. Dois objetivos importantes para quem viaja à Europa: esvaziar a bexiga e encher a barriga. Perigo é trocar.É sofrimento duplo.

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